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CARTAS DO REICHENBOMBER - Opus 30


Digressões Sobre Como Filmar o Desejo (I)


A pré-estréia de LA DONNA LUPO, o novo filme de Aurélio Grimaldi (La Buttane e Nerólio) em Roterdã 2.000, a entrevista de Gaiarsa (que andou muito tempo de quarentena) na revista Isto É desta semana, e o impacto da inclusão de uma cena de sexo explícito na apresentação do grupo catalão Fura Del Baus, no encerramento de um Festival de Teatro em Belo Horizonte, na semana passada, estão levando o escriba a repensar algumas coisas sobre o erotismo e a pornografia no cinema e a mexer em seu novo roteiro, atualmente em processo.


"La Donna Lupo", novo filme de Aurélio Grimaldi

Enquanto espero concluir a captação de recursos para o filme piloto da série ABC-CLUBE DEMOCRÁTICO (uma ambiciosa "saga" ficcional sobre operárias têxteis do ABC paulista), o longa metragem AURÉLIA SCHWARZENÊGA, que busca retratar, a partir de uma árdua pesquisa, mas desenvolvida sob a luz do meu imaginário, o preconceito e a violência nas manifestações proletárias de neofascismo na região, estou escrevendo um longa, de produção rápida e barata, mas extremamente pretensioso, que talvez filme ainda este ano.

Trata-se de ORDET (uma referência óbvia ao clássico de Carl Th. Dreyer), um filme sobre a palavra, uma pensata a respeito das tênues diferenças entre amor, paixão e desejo; uma celebração à vida a partir do inexorável da morte, mas com uma ressurreição no final. O enredo: cineasta interrompe a montagem de seu último filme para cuidar da esposa que está morrendo de uma doença não detectada a tempo. Enquanto ela agoniza na UTI, ele tenta sublimar seu desespero pelos corredores desertos do hospital. Uma jovem enfermeira, que acompanha o calvário do casal, convence o cineasta a almoçar com ela num restaurante próximo. Na longa conversa e no entendimento que se estabelece entre os dois, ele faz um inventário de sua vida afetiva.


Cena de "Amor, Palavra Prostituta"

Evidente que, em uma obra que pretenda se aprofundar em questão tão complexa como o desejo, é impossível não mergulhar de cabeça nas águas capciosas do erotismo. Sei inclusive, de antemão, o quanto vai ser árduo rodar certas cenas previstas no roteiro. O leitor pode não acreditar, mas há nada mais tedioso que filmar cenas de sexo. No início, é difícil sublimar a aura de constrangimento que se instaura entre equipe e elenco. Vencida esta sensação, o que sobra é puro tédio. Pelo menos, na filmagem do chamado erotismo "soft" ou nas prosaicas cenas de nudez sem qualquer ilação sexual. A única coisa que torna a feitura de uma seqüência (não um plano) erótica realmente excitante é a busca de uma certa originalidade na maneira de sugerir sensações de tesão e prazer.

Juro aos leitores que não virei crente e muito menos dependente de Viagra, Tigra (o Viagra francês) e outros bichos. Afinal, isso nem parece conversa de quem realizou uma pá de filmes sexualizados até a medula, como AMOR, PALAVRA PROSTITUTA e O IMPÉRIO DO DESEJO. Mas alguém já disse que filmar sexo é tão infernal quanto filmar um crime. Para que o espectador acredite no que está vendo é preciso criar uma imensa mentira.

Dizem que Paul Verhoeven após rodar cada cena de sexo ardente em SHOWGIRLS, com aquele vulcão uterino chamado Elizabeth Berkley, sumia do estúdio para dar uma bimbadinha básica com a dita cuja. Duvido, acho que tudo não passou de conversa fiada do pessoal da divulgação só para apimentar mais o molho do indiscutível banquete lúbrico. Alguns críticos podem achar o filme uma joça, mas que SHOWGIRLS é excitante, isso ele é. Como diz um amigo menos cartesiano, eis um filme do cacete. Fico imaginando o tédio abissal da gigantesca equipe rodando a tal seqüência da "dança da cadeira". Montada, sonorizada e mixada, a seqüência é de despertar qualquer gigante adormecido. Filmá-la deve ter sido um porre. Fica-se tão preocupado no que se vai mostrar e, pior, como se vai mostrar, que não há sátiro que se manifeste. Fica lá um bando de gente atribulada em esconder ou ressaltar saliências e reentrâncias, que não existe o mínimo clima propício para qualquer outra coisa que não seja trabalho.

Cenas lúdicas e prosaicas de um casal ou duas moças dançando, por exemplo, são muito mais prazeirosas de realizar. Basta instaurar um clima de encantamento, via música, luz e movimento, que a rodagem flui naturalmente. Falo isso por experiência própria. Você observa a equipe no momento da filmagem e descobre nos olhos da maioria um instante de felicidade, quando não, de êxtase. Isso sem falar da carga de sensualidade que uma trivial cena de dança pode conter. Joshua Logan, o diretor de PICNIC (Férias de Amor), não me deixa mentir. William Holden e Kim Novak, descendo aquelas escadarias, gingando o corpo e estalando os dedos, ao som de "Moonglow" é de arrepiar os pelos do corpo todo.

Nos estertores da pornochanchada, após ter sido diretor de fotografia de três longas metragens (Excitação, Mulher, Mulher e A Força Dos Sentidos) de Jean Garret, um dos grandes artesãos do gênero erótico, fui por ele instado a fotografar um filme de sexo explícito chamado GOZO ALUCINANTE. Confesso, que num primeiro momento, a idéia não me agradou em nada. Nenhum preconceito contra o sexo ao vivo e em cores desde que realizado para o prazer de quem o pratica e de quem o assiste, ou melhor ainda, quando imaginado pelo viés da transgressão. Mas o embasamento meramente mercenário das produções típicas da época me causava repugnância. Garret defendia seu intuito de filmar com bom gosto e criatividade e, como eu tanto gostava, iluminando os interiores com a luz dos refletores filtradas por camadas de lã de vidro amarela (que dá uma textura suave à pele das atrizes, atenuando estrias e cicatrizes, além de sugerir a luz de regiões de baixa voltagem elétrica, como fazendas, casas de campo ou de praia, etc), e filmando os exteriores somente nos horários de luz suave.


Cena de "Império do Desejo"

Durante a primeira semana, mal consegui dormir direito. Me sentia o próprio açougueiro que injeta corante nas carnes cruas para torná-las mais suculentas. A mocinha do filme abria as pernas, e lá íamos eu e o meu chefe-eletricista com um refletor de mil watts, uma camada de lã de vidro colada ao bandô, achar o eixo certo para "adocicar" o ângulo ginecológico da lente macro. Na minha cabeça, a sórdida questão: "Será que eu estudei, ralei como um cachorro e me intoxiquei de filmes geniais todos estes anos, para acabar filmando isso?". Convenhamos, não se vence todos os preconceitos de uma educação católica e/ou luterana na primeira desbundada. Verdade é que duas semanas depois eu e meus técnicos ficávamos mais preocupados com a chegada da kombi do almoço do que com a profusão de genitálias a um palmo de nossas fuças.

No final, o que sobrou desta experiência nada orgiástica foi a tremenda angústia de testemunhar tanto sexo sem desejo e uma ternura imensa por algumas daquelas mulheres ofendidas em seu cotidiano, que ao mimetizarem esgares de falso prazer eram, quase sempre, obrigadas a sublimarem qualquer vestígio de um orgasmo verdadeiro. Apesar de tudo, neste universo de patéticos garanhões que se excitam consigo mesmo e de fêmeas assanhadas pelo cachê miserável, ainda há espaço, e muito, para a amizade e o respeito mútuo. Durante as quatro semanas que ficamos isolados, equipe e elenco, numa casa de campo próxima à Registro (SP), não houve uma única briga e nenhum romance anunciado. Um dos produtores apareceu uma noite no local, de surpresa, esperando flagrar verdadeiras orgias tribais. Encontrou um bando de gente cansada, embora animada, após um estafante dia de trabalho, jogando cartas e cantando músicas do Tim Maia. Decepcionado e arrefecido em seus arroubos másculos pelas estrelas do filme, teve que ir aplacar sua volúpia caudalosa na zona da cidade mais próxima. E isso, eu juro, é a mais pura verdade.

Mas entremos finalmente no assunto Grimaldi, abrindo espaço para uma questão bastante intrigante. O que leva certos realizadores formados pelo cinema experimental a, de um momento para o outro, optarem por um cinema erótico e comercial? Veja-se o caso de Tinto Brass e Walerian Burowczyk.

Brass iniciou sua carreira com alguns dos filmes formalmente mais atrevidos dos anos 60: ESCALATION (Col Cuore In Gola - 67), L’ URLO (68), NERO SU BIANCO (68) e OS DESAJUSTADOS DO AMOR (Drop Out - 71). Esse último, uma versão mais erudita, embora tão radical quanto À MARGEM do brasileiro Ozualdo Candeias, com o casal Vanessa Redgrave e Franco Nero naufragados num lixão de Roma.


Walerian Burowczyk

Burowczyk fez um clássico do cinema contemporâneo, com bonecos, chamado O TEATRO DE M. e Mme. KABAL (67) e um árduo filme de exílio GOTO, A ILHA DO AMOR (68). Instado por um produtor que colecionava o néctar da literatura erótica, realiza UMA COLEÇÃO PARTICULAR (73). À partir daí, dedicou-se única e exclusivamente a explorar todas a nuances do erotismo. Tal como Tinto Brass, Borowczyk também fotografa, monta e edita a maioria de seus filmes. Nos mais bem sucedidos, como A MULHER E LA BÊTE (75) e LA MARGE (76), atinge o sublime. Os vários outros que vieram depois não lhe fazem justiça. Borowczyk parece não ter conseguido mais fugir da ditadura dos borderôs. Seu último título distribuído internacionalmente é EMMANUELLE 5 (87), diga-se de passagem, um dos piores da série, que já é ruim por natureza.

Tinto Brass é o um ogro obeso e obsceno. Ama as mulheres de saliências robustas e que seleciona com o crivo da abundância. É um sacana da melhor estirpe. Diz a lenda, que após exibir DROP OUT (Os Desajustados Do Amor) num dos festivais de primeira grandeza, foi chamado ao palco para receber um vaia fenomenal. Não fez por menos, abriu o zíper da calça e balançou o "molho de chaves" para a platéia. Deve ter enchido o saco de arriscar no vazio e só levar bordoada dos críticos. Daí para a frente, caiu na gandaia.


A atriz Serena Grandi

Arrancou a já senhora, mas ainda deslumbrante Stefania Sandrelli, da aposentadoria e fez a insuspeitada sensualidade matriarcal de generosas proporções da ex-estrela de Pietro Germi explodir nas imagens de A CHAVE (83). A verdade é que o que mais chama atenção no filme são, justamente, os seios magistrais, intocados por qualquer bisturi, de La Sandrelli, um acinte à lei da gravidade. No quesito quantidade, Tinto Brass é um Pigmalião tarado. Em MIRANDA (85), revelou para o mundo a excelsa Serena Grandi, cujo sobrenome já diz tudo, frente e verso. Em CAPRICCIO (87) usou e abusou da alvura impressionante de Francesca Dellera, um das mulheres de lábios (leia-se boca) e seios mais avantajados da face da terra.


A atriz Deborah Caprioglio

Em PAPRIKA (89) desnudou Deborah Caprioglio, a última senhora Klaus Kinski, que em matéria de mulher não era nada desatinado nem avarento. Mais recentemente, Brass deteve suas lentes nas coxas de uma ninfeta pedalando uma bicicleta em MONELLA (98), para revelar a ausência de incômodas calcinhas. Se o filme é bom não interessa, a rapaziada do mundo inteiro aprovou o que viu. O safado Tinto Brass promete entrar o ano 2.000 em plena forma com TRANSGREDIRE, onde promete revelar uma nova vestal de nome difícil, Yuliya Mayarchuk, mas, na certa, de farto console.

Eu pessoalmente, gosto muito do jeito displicente e maroto com que Tinto Brass filma suas mulheres. Todos os expedientes de seu cinema mais maldito, que tanto impressionavam a mim e ao amigo e crítico Jairo Ferreira, estão presentes em seus filmecos sensuais. Quanto ao affaire CALÍGULA (80), a culpa, pela inclusão de cenas estúpidas de sexo explícito ou da pavorosa edição final, deve ser creditada unicamente ao sr. Bob Cuccione, o produtor do filme e editor da revista Penthouse, que vai ficar para a história por maquiar e fotografar as vulvas de suas centerfolds com o mesmo requinte de um estilista de cadáveres.

Pois bem, depois dos polêmicos e ultra-realistas, LA RIBELLE (93), LA BUTTANE (As Prostitutas - 94), NERÓLIO (96), que arriscava uma atrevida investigação a respeito da morte de Pasolini, e IL MACELLAIO (98), Grimaldi apresenta sua trilogia sobre o mistério feminino, segundo o seu imaginário: LA DONNA LUPO, LA DONNA FALCO e LA DONNA ANTÍLOPE.


Cena de "La Donna Lupo"

Pela amostragem de LA DONNA LUPO, o mistério vai continuar insondável. Ao narrar a história de uma jovem mulher de incontrolável furor uterino, Grimaldi abandona de vez a aridez das imagens implacáveis e veristas de seus filmes anteriores. O plano inicial ainda promete. A heroína faz um streap-tease, coreografado com exagerada vulgaridade no ritmo de uma música bate-estaca minimalista, para um bando de homens decrépitos. Como a imagem foi captada em vídeo, acentua-se a granulação do preto e branco. A lente fica encostada na bunda mulher, enquanto ela faz movimentos pélvicos vigorosos. Há um aparente elogio ao patético da situação, que dá impressão que o filme irá transgredir daí para a frente, e em definitivo, toda a noção burguesa de recato e compostura. Na seqüência seguinte, o filme fica colorido, no mesmo esteio da luz recortada e com muito contraluz, que caracteriza a pior perfumaria do pornografia soft. Grimaldi filma sua atriz principal, a bonita e pouco nutrida, Loredana Cannata, com certa timidez ou de olho nas vicissitudes da impropriedade etária de seu produto. São intercaladas cenas da personagem dando depoimento para a câmera, mas o recorte psicanalítico da pretensa devassa de Grimaldi na ninfomania da personagem leva o restante do filme para o vinagre. Houve quem considerasse, em Roterdã, um filme visualmente denso e vigoroso. Então, eu acho que não vi o mesmo filme. O que mais irrita nas cenas de sexo de LA DONNA LUPO é um indisfarçável sentido de culpa; culpa da personagem que tem seus orgasmos carregados de angústia, e culpa de quem está por trás das câmeras tentando entender a infelicidade da sua "misteriosa" heroína.


Cartaz de "Contos Imorais"

Burowczyk filmava esquisito, mas era muito mais criativo e excitante ao deixar seus personagens se manifestarem sem crivos morais. Basta lembrar o banho de sangue de virgens na Paloma Picasso de CONTOS IMORAIS, ou a protagonista de A MULHER E LA BÊTE se masturbando com uma rosa, ou ainda, Sylvia Kristel sendo sodomizada pelo ator fetiche de Paul Morissey, Joe Dalessandro, em LA MARGE. Nesta última cena, em especial, um orgasmo é essencialmente um orgasmo, jamais um ato de punição.

Com o safado Tinto Brass, sexo é puro deleite. Suas bambolas transpiram hormônios sexuais e enlouquecem os homens com sua disponibilidade atrevida. Sexo instintivo e de ferrenha libertação.

O erro de Grimaldi, em última análise, foi querer seguir uma certa linha de filmes franceses contemporâneos, onde o sexo é mais questionado do que praticado. Mesmo seu compatriota Marco Belocchio, nos filmes influenciados por sua terapia pessoal, como O DIABO NO CORPO (86) e LA CONDANNA (Condenação do Desejo - 90), buscou sempre avançar na abordagem das questões do desejo por caminhos menos convencionais, subvertendo juízos morais e instaurando o benefício da dissonância transgressora.

E falando de sexo, vale a máxima 68: "eu não sei o que eu quero, eu sei o que eu não quero". Ou não?

A digressão não termina aqui. Falta falar de Lydia Lunch e da pornografia como instrumento do auto-conhecimento. Volto ao assunto em uma próxima carta. Na semana que vem, o resultado da enquete "transgressores e ignóbeis".


CARLOS REICHENBACH



Carlos Reichenbach, 54, é cineasta, roteirista, diretor de fotografia e crítico, além de rebelde renitente e utopista assumido nas horas vagas. Suas principais vítimas e afetos serão revelados nesta coluna. Atrás das câmeras desde 1966, Reichenbach está lançando seu 12º longa, Dois Córregos.

Comentários, desgostos, bombas e coquetéis podem ser enviados para: reichenbach@zaz.com.br

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