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CARNE TRÊMULA RAPIDINHO "Entregador de pizza apaixona-se por garota viciada em heroína". Esta é a frase que a maioria dos jornais utiliza para sintetizar "Carne Trêmula", do espanhol Pedro Almodóvar. A maioria dos jornais, como sempre, está errada. A trama principal do filme acontece quando o entregador de pizza vira um ex-presidiário, e a viciada em heroína vira a esposa virtuosa de um policial paraplégico. A grande virtude de "Carne Trêmula" é justamente essa brincadeira com os destinos dos personagens, obtida através de elipses narrativas bem radicais. O grande defeito do filme é achar que o espectador preenche sem qualquer dificuldade esses "buracos" na história. AGORA COM MAIS CALMA
Tenho grande receio de exigir "realismo" de um filme, mesmo porque muitos filmes simplesmente não são realistas, nem se propõem como tal, e passam muito bem, obrigado. Prefiro utilizar o termo "verossimilhança", que, a grosso modo, significa a capacidade que o filme deve ter de convencer o espectador de que os acontecimentos e os personagens da história são coerentes e possíveis, dentro do universo ficcional criado pelo realizador (que não é, necessariamente, realista). Mesmo a mais louca fantasia futurista precisa ser verossímil, ou perde sua força dramática. "Carne Trêmula", como todo filme de Almodóvar, tem exageros propositais que o afastam do realismo tradicional, mas – ao contrário de suas obras melhor sucedidas – não sustenta a coerência interna necessária para que embarquemos plenamente na viagem proposta pelo diretor. Exemplos? A cena do cemitério, em que duas coincidências se acumulam: o ex-presidiário vai visitar o túmulo da mãe justamente quando acontece o enterro do pai de sua amada; e, logo depois, encontra-se com uma mulher (também personagem importante) que chega atrasada para a cerimônia (de modo a conhecê-la sem que os demais personagens saibam disso). Tudo bem, o cinema não vive sem coincidências, e por isso os roteiristas os adoram, mas, num filme em que o vício da heroína e seis anos numa penitenciária não são elementos definidores do caráter dos personagens, pelo menos o enredo precisa ter uma lógica mais severa. Outro exemplo? Uma cena violenta entre o ex-presidiário e o policial paraplégico, que estão quase se matando, mas param de brigar quando vêem um gol na TV e descobrem que torcem para o mesmo time. A tentativa de dar um verniz político ao filme, que começa em 1970, na ditadura, e termina em 96, com democracia, também não funciona. E por isso jamais poderia ser a grande amarração da narrativa. Talvez as relações amorosas dos cinco personagens sejam uma grande alegoria do período franquista, mas, se a intenção era a metáfora, essa nem o Glauber entenderia. Almodóvar certamente é um cineasta "político", na verdadeira acepção do termo, pois suas crônicas mundanas e despudoradas - sempre autorais e nunca diluídas no gosto médio do público – mostram a Espanha ao mundo com uma auto-crítica aguda e corajosa. Almodóvar, contudo, nunca será um historiador. Ele é um grande contador de histórias. "Carne Trêmula", apesar das fraquezas do roteiro, é um bom filme. Almodóvar dirige atores como poucos e tem uma noção de ritmo perfeita. Às vezes, parece estar brincando com a câmara, sem chegar ao maneirismo. O sucesso do filme, a meses em cartaz, é uma prova de que é possível obter empatia com o público e ao mesmo tempo inovar na narrativa. Sem ser uma obra-prima, é mais um passo de Almodóvar em sua luta vitoriosa por um cinema essencialmente emotivo e autoral. Carne Trêmula (França/Espanha, 1997). De Pedro Almodóvar. Com Javier Barden, Francesca Neri, Liberto Rabal e outros. Dê sua opinião ou cale-se para sempre
Carlos Gerbase é jornalista e trabalha na área audiovisual, como roteirista e diretor. Já escreveu duas novelas para o ZAZ (A gente ainda nem começou e Fausto) e atualmente prepara o seu terceiro longa-metragem para cinema, chamado "Tolerância".
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