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    ALEXANDRE RODRIGUES
alex.rod@terra.com.br

Crueldade

Sábado, 30 de novembro de 2002, 00h03



De manhã, mal abriu os olhos, Turô mecanicamente tomou sua ração de comprimidos diária com um copo d´água da noite anterior, então ouviu um chilrear e viu o passarinho parado no parapeito da janela. Já muito se conhece sobre o comportamento arredio dos pássaros, mesmo os que nascem e crescem nas cidades, mas aquele, mesmo vendo a mão se aproximar, decidiu não se mexer e inocentemente deixou-se agarrar, sentindo a carne dos dedos se fechar em volta de seu corpo trêmulo. Com o pássaro na mão, Turô o apertou com toda a força até ter certeza de que estava morto.

Jogou o pássaro no lixo e limpou a mão, depois foi fazer a barba. Na semi-penumbra do corredor, indo para o trabalho, arrancou pacientemente as folhas de uma samambaia enquanto esperava o elevador. O portão da garagem se abrindo, ele viu o cachorro passar devagar à frente do carro. Deu tempo de acertá-lo com lado do carro, o bicho ganiu e, Turô viu pelo espelho do retrovisor, caiu imóvel. Assoviando, ele manobrou e seguiu pela rua.

No caminho, ainda acertou um gato que, com a incerteza de sua espécie, demorou-se demais tentando adivinhar para que lado o carro iria. Turô não sentiu prazer com o gato. Na verdade, gostava deles, a indiferença que devotam aos humanos. Não se vendem por comida, água, leite ou carinho, como os cães. A paralisia que sentem diante dos carros é um dos poucos defeitos dos gatos. Por isso, decidiu que só um deles estava de bom tamanho para a viagem. Logo depois, notou a velha saindo da calçada, sem prestar atenção quando a luz amarela do sinal começou a piscar e menos ainda quando ficou vermelha para os pedestres. O pára-choque a acertou de lado e ela estava morta dois segundos depois.

Na vida, matam-se cães e gatos e ratos e coelhos e bois e porcos e toda qualquer espécie e até alguns tipos de homens, mas não todos. Quando o carro saiu, um grupo já corria na direção da mulher. Uma mulher disse que anotou a placa, um homem discou do celular para a polícia. No carro, Turô ligou o rádio e assoviou junto um samba da moda. Na hora do refrão, começou a gritar junto, quando apareceu a loira com jeito de que saíra da academia. Uma mulher bonita, com o corpo malhado em academia, músculos enxutos, emanando vitalidade. Distraída, examinava a própria barriga, tentando encontrar alguma gordura que não percebera antes. Mal teve tempo de levantar os olhos ao perceber o barulho incomum dos pneus subindo o meio-fio, o motor acelerando... dois... um... fim. O carro manobrou de volta para a rua e seguiu pelo asfalto, cantando pneus para fazer uma curva.

E atenção. A polícia procura um Gol preto nas ruas da zona norte. As primeiras informações são de que há poucos minutos o veículo atropelou e matou duas pessoas e depois fugiu. Ao que parece os atropelamentos foram em locais diferentes. Um helicóptero da polícia já foi mandado para o local. Nosso helicóptero aqui da rádio também já segue para a região, acompanhando de perto esta perseguição. E segue daí Vasco Ricardo!

Uma sinfonia de sirenes passou, fazendo as pessoas na rua se virarem para olhar. Turô ouviu pelo rádio sobre a movimentação. Viu o helicóptero da polícia voando acima dos prédios, subindo e descendo sobre as ruas. Acelerou e, sem dar sinal, virou por duas ruas. O barulho das sirenes ficou mais distante. Pela janela, tentou ver de novo o helicóptero. O repórter voltou a falar no rádio.

A polícia já está na cola do carro. Repito: este veículo atropelou e matou, ao que tudo indica intencionalmente, duas mulheres. A primeira, temos informações, chamava-se Guiomar, morava ali perto e estava indo ao supermercado. Agora, ocorre uma perseguição. Segue com você, Vasco Ricardo.

Notou primeiro as pastas que caíam dos braços do homem. Mais de dez, de cores e tamanhos diferentes. Ele tentava segurá-las, empilhando entre os braços, mas sempre deixava cair uma e depois outra e depois mais uma, tendo que se abaixar o tempo todo para as pegar e colocar de volta nos braços. Turô o avaliou. Um professor, provavelmente, carregando pastas de trabalho dos alunos. Notou o olhar cansado no rosto e um andar meio curvado. No meio da faixa de segurança mais uma pasta caiu. Turô pressionou devagar o acelerador. Em quanto o pé descia mais, começou a dizer coisas para si mesmo. Adeus prova final, o pedal mais embaixo, adeus prova de ciências, mais um pouco, nenhuma recuperação na quinta, sexta, sétima ou oitava séries, e ainda mais. O pé afundou o pedal de uma vez, os pneus cantando. Apostou consigo mesmo que a primeira pasta a cair no chão depois do choque teria a cor azul. Quando o corpo do professor voou, quase todas voaram também e caíram ao mesmo tempo. Não conseguiu saber qual foi.

Uma, duas, três, quatro, cinco homens e mulheres com cara de trabalhadores, comerciários, operários, vendedores, uma outra de uns cinqüenta anos, vestido com grandes flores estampadas, um punk, o movimento do carro para cima do ponto de ônibus, os olhares de surpresa, de volta à rua. Segue a corrida. Uma sinfonia de morte e corpos espalhados. Um cão desprevenido. Morto. Balança o maestro a batuta, apontando para a solista do oboé. Freios. Olhou o relógio. Os tambores. Mais gente atravessando a rua. Podia ser uma sinfonia alegre. Além de tudo, estava adiantado para o trabalho. Ou uma sinfonia triste como a dor mais profunda do mundo.

Urgente. Policiais acabam de cercar o carro. Daqui do alto, Vasco Ricardo, dá para ver que o motorista foi dominado. Ele já saiu do carro e está ajoelhado, com as mãos na cabeça. O veículo é um Gol preto. Temos informações que já são mais de dez as pessoas atropeladas. A polícia chegou a perder a pista do carro, mas os policiais o encontraram de novo há pouco. O motorista foi algemado. Ainda não sabemos se ele está bêbado ou sob efeito de drogas, mas já lançamos no ar a pergunta, caro ouvinte. O que você acha que deve acontecer com este cidadão? Concorda com a pena de morte para acidentes de trânsito? Ligue para nós e dê sua opinião. Alô, quem está no ar?

Como todos os dias, teve trabalho para achar uma vaga. O manobreiro fez uma piada, que azar de novo, hein, doutor.

Soube do maluco? – o manobreiro puxou assunto.

Não.

Um cara louco, com um Gol preto igual ao do senhor, matou mais de doze por aqui perto. Atropelados. Deu no rádio que a polícia pegou o filho da puta.

Bem feito.

É bem feito, tinha era que linchar e fazer justiça na hora. Ou mandar para a cadeia para comerem o cu dele. Ainda bem que o senhor chegou. Já imaginou se a polícia pensa que o carro era esse aqui.

Deu um tapinha na lataria. Os dois riram e Turô seguiu em direção à rua. De repente parou e voltou. Examinou o pára-choque. Nenhuma marca ou arranhão, constatou satisfeito. Depois entrou de novo no carro. Apesar do sol impiedoso do verão, não ligou o ar condicionado. Com o suor molhando a testa, viu o manobreiro passar à frente, ligou o motor com cuidado e depois pisou no acelerador.

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