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    MARIANA DIEHL BANDARRA
mariana.bandarra@terra.com.br

Epitáfio

Sexta, 02 de agosto de 2002, 16h44



Sobre o esquife de entalhes opulentos, Cristo morria a cada fração. A morta era ruiva, mas apenas tufos amarelo-acinzentados transpareciam do tule branco. Por baixo, um rosto adormecido; encoberto por flores, mergulhado. De quando em quando eu saía, e ia pisoteando as sepulturas. No começo, pisava devagar, mas fui gostando, até sentar em uma delas, para furtivamente acender um cigarro.

Sentada, as rugas repuxadas em contrição, vovó pensava na causa mortis: câncer generalizado, inicialmente um câncer de estômago. As mãos da morta emergiam entre as flores. Cruzadas, os dedos intumescidos e foscos. Vovó sentia a morte da irmã como me parecia jamais ter sentido nada.

Eu fumava sentada sobre o Ex-Sr. Hélio Amaral. Achava bonita aquela morte coletiva; um campo reservado para ossos sem dono, um verdadeiro spa para vermes. Ao meu lado pude notar um vulto negro, aproximara-se furtivamente, e me olhava de uma distância desrespeitosa. Parei de respirar. Escondi depressa o cigarro com o corpo e levantei. Ele sentou-se em meu lugar. E de cima, pela primeira vez, pude discernir sua figura. Aparentava uns dezesseis anos, louro e delicado, de traços longos e tristes, apesar do sorriso. Pediu-me um pito, eu alcancei o cigarro tentando sorrir.
- Senta.
Sentei-me com as pernas bambas. Eu não sabia seu nome.
- Gabriel.
Gabriel era - segundo o que se ouvia - o tormento, a autêntica causa do famigerado câncer. Eu ouvira falar a legenda que informava sua má fama. "Conseguiu matar a mãe, de desgosto.", vovó repetia ao telefone para toda a árvore genealógica. Não se sabia ao certo qual era o desgosto, mas não fazia sentido então. Ele era belo, vestido com um terno azul-escuro que lhe folgava visivelmente. E quando, ao atirar longe o filtro apagado, flagrou-me espiando-lhe, abriu um sorriso de grandes e lindos dentes amarelos. Já mais calma, eu não imaginava se ele de fato sabia que éramos desertores do mesmo velório. Talvez a velha ruiva fosse boa e não merecesse morrer. E pensando bem, nem eu sabia quantos gabriéis poderiam vestir ternos largos e escapar dos velórios para abordar desconhecidos e sentar em lápides e sorrir e falar.

Vovó chorava ainda, sentada no longo banco de madeira. Não rezava mais, apenas cobria o rosto com as mãos em concha, e chorava. Onde estaria eu a esta hora? Ela sequer imaginaria. Apertava tão forte meu braço eu não podia gritar pois a capela ecoaria contra mim. Eu não tinha razões para estar triste, e sentia por isso. Me penitenciava, presa à sua mão troncuda.

- Está triste?
Não estava nada. Ele riu, e era quase indecente aquele riso tão declarado em meio à solene melancolia da paisagem. Acabei rindo, contagiada, mas logo me recompus.
- E você?
- Não tenho razões para estar triste.

Gabriel esboçou um novo sorriso, mas pôs-se sério de repente. Desferiu-me um olhar inocente de transparência azul clara.
- E está feliz? — perguntei tímida ainda.
Não respondeu. Ofuscada pelo sol, arrebatada pelo inesperado, mãos suadas, permaneci. Escapei o olhar por um instante e a resposta logo se fez:
- Você não compreende que não há razão para se estar triste ou feliz. É natural, estamos vivos hoje; amanhã vamos morrer. Eu e você vamos ficar como este... — e parou um instante para ler a inscrição na pedra — Hélio Amaral.
— E como a senhora ruiva na capela lá embaixo — completei. Gabriel então calou-se. E permaneceu assim por um minuto inteiro, contemplando um ponto qualquer, através das três dimensões. Como se soubesse algo que ninguém mais.

De repente senti a mão afrouxar, a carne latejava em seu lugar. Vovó me levantou bruscamente, pelos ombros, pôs-me de frente. Chorava ainda. O viúvo estava exausto, deveriam fechar o caixão. Ela não podia aceitar, não agüentaria a dor, “justo a caçula”, ela repetia. As palavras lhe saíam difíceis da boca contraída.

Ela soluçou meu nome, disse querer que eu me despedisse também. Meus pensamentos flutuavam através do salão. De alguma fresta, me olhavam olhos transparentes sem lágrimas. Nas faces de vovó, elas rolavam salgadas, avermelhando a compleição germânica.
- Vai. Dá um último beijo na tua tia, te despede, anda.

Dizendo isso, Gabriel apertou-me contra seu corpo. Ele não era forte e eu poderia ter facilmente me desvencilhado. O terno de lã pinicava, afastei o rosto, encenando uma cara de quem quer explicações.
- Chega. Agora vou te beijar., ele disse sem sentimento reconhecível na voz. Na verdade a voz de Gabriel raras vezes saía do mesmo tom assoprado e tranqüilo.

Como eu poderia dar um último beijo naquela mulher que eu conhecera ali? Jamais sequer a vira antes, quanto mais beijá-la! Mas não havia como fugir, é mais difícil contrariar as regras quando se tem doze anos. Para facilitar, vovó acompanhou-me até lá. Puxou o tule, deixando transparecer algumas pústulas mal maquiadas pela moldura de flores. De leve, ela empurrou-me as costas, para apressar o ato. Pressionada, curvei-me sobre a morta que eu nunca beijara e toquei-lhe de leve a face com minha boca molhada, cheia de promessas e sonhos. Atrás de mim, vovó segurava minha mão, e conduziu-a às mãos frias entre as flores. O toque acetinado da mão defunta me deu ganas de correr para longe, procurar Gabriel, mas não é tão fácil desobedecer, pensei. Em seguida o caixão foi fechado, e o cortejo seguiu para o sepultamento. Na ala posterior, duas senhoras cacarejavam:
— A gente se sacrifica a vida inteira, e quando morre, nem os filhos vêm chorar...por isso é que eu não me caso.
A outra concordava com a cabeça.
Olhando para trás, eu aproveitava a distração de vovó, procurando descobrir o paradeiro do filho pródigo. Quando pareceu-me que via algo em marinho esgueirando-se entre as árvores ao longe, um beliscão. As preces haviam começado, era preciso mostrar respeito.

Gabriel tinha lábios muito macios, cálidos e desenvoltos. Eu era uma criança apenas, com espinhas na cara e heróis na cabeça. Estava nervosa, e logo ele me afastou, segurando minha cabeça com ambas as mãos. Olhou fixo entre meus olhos e murmurou que eu ficasse tranqüila e não me preocupasse. E dizendo isso, pousou sua mão de brancos dedos em meu pescoço, me afogou num beijo fúnebre. Enquanto tinha seus lábios nos meus, era como se me contasse um segredo, como se agora soubéssemos coisas importantes sobre a morte e a vida.

Eu devia voltar para o velório, antes que sentissem minha falta.

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