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    MARIANA DIEHL BANDARRA
mariana.bandarra@terra.com.br

Aeroplano

Sexta, 26 de julho de 2002, 15h24



João caminhava sozinho na clareira, de um lado para outro. O sol caía, e nas montanhas ao redor, um manto lilás flutuava em maciez inebriante. Parecia-lhe ouvir ruídos de todos os lados, a vida reverberava. João não sabia se o rumor vinha da floresta ou de sua própria cabeça.

A equipe do aeroclube lhe estourara champanhes, a festa estava animada. Ao redor da piscina, as senhoritas bebericavam, com olhares e planos silenciosos. João apagou as velinhas, eufórico e correu para fora, permeando a multidão furtivamente chegando até a pista. Atrás dele, a recepção fervilhava com gargalhadas e causos. Na porta, ele ainda teve de despistar o Coordenador, que já iniciava um discurso louvando-lhe a honestidade e grandeza de coração, próprias de “um homem de fibra”. Ao abrir a porta do hangar, voltou-se e não havia ninguém.

A calça do tuxedo já se achava enlameada e rota, a fralda da camisa saía-lhe de um lado. O paletó, largado num monte de folhas, mais parecia um trapo. João terminava de reunir os gravetos para a fogueira. Um cigarro apagado pendia de seus lábios, ele atirou sobre os gravetos o que restara-lhe de conhaque e riscou um fósforo. Então parou, no preciso epicentro da clareira, e deixou-se cair sobre a pilha de folhas com um suspiro. Endireitou-se, focalizou seu olhar no ponto exato entre duas árvores, e repousou ali. A noite despencara sobre tudo, tudo passava por sua mente, ele não desviava os olhos.

Primeiro abriu a porta e entrou no avião. No assento traseiro, alcançou a garrafa de conhaque. No primeiro gole, torceu-se todo, mas no terceiro já estava bem. Fechou a garrafa e deu a partida. Voou por horas. Sob as nuvens, entre ele e o céu, os erros e acertos de seus cinqüenta anos. João sorriu sozinho, sorvendo uma golfada da bebida. Até que ocorreu-lhe olhar para baixo. A cidade não estava mais lá. Assaltou-lhe um segundo de lucidez, não sabia para onde voara. Abaixo, apenas árvores. O ponteiro do combustível oscilava, próximo ao zero. João cerrou os olhos, não podia ser verdade. Na primeira clareira da floresta, aterrissou ruidosamente.

No meio das duas árvores, ele pôde ver antes de tudo um par de olhos, muito grandes, que lhe observavam. Os olhos aproximaram-se, e sob a luz das chamas oscilantes, João divisou o vermelho sangue que eles vestiam. A menina falou com uma voz muito alta e aguda numa língua desconhecida, mas que parecia fazer sentido, embora João não a compreendesse. Não se surpreendeu com ela, sequer sobressaltou-se à sua aproximação.

Na cabeça lisa ela vestia uma espécie de coroa feita de miçangas brancas que lhe contrastava com o breu da pele. Desta coroa, pendiam correntes com berloques em forma de pontas de flecha. As sobrancelhas eram raspadas, deixando em evidência os olhos muito brancos, agora refletindo o fogo que minguava. Nas maçãs do rosto, liam-se duas cicatrizes em forma de sinais rústicos, desenhados fundo na pele. Uma bata de tecido carmim escondia-lhe o corpo, deixando de fora somente os braços e os pés descalços. Aproximou-se, estendendo a mão, seus punhos enleados por contas de todas as cores. João levantou-se, alcançou-lhe a mão e deixou-se levar por dentre a floresta úmida, onde a voz aguda sobressaía-se entre a zoeira dos seres. A menina voltou, por entre as duas árvores e tomou um caminho invisível na escuridão. João sentia que havia uma trilha sob si, mas tropeçava de metro em metro enquanto a menina andava sem ruído algum, puxando-o firme pela mão, desenrolando seu discurso como se pregasse uma doutrina. O chão abaixo de seus pés ia ficando mais e mais movediço, as canelas afundavam. De repente a menina parou de falar. João continuava sem ver nada, e sentiu a mão soltar-se. Girou seu corpo, emitiu um ruído qualquer como chamado, não sabia que nome usar. Grunhiu mais alto e o grunhido respondeu-lhe, ecoando. Já não haviam ruídos de floresta. João girou o corpo sobre o eixo, caindo sobre os calcanhares. Estava exausto.

No bolso da calça, buscou a caixa de fósforos e riscou três juntos. Ao seu redor, o concreto e os aviões. Reconheceu a saída de serviço e abriu a porta para a rua, já quase queimando os dedos. Lá fora, ao longe, o coordenador caminhava, apreensivo e puxa-saco, na direção do hangar.

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