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    MARIANA DIEHL BANDARRA
mariana.bandarra@terra.com.br

Distorções

Sexta, 19 de julho de 2002, 17h34



à carolina e desirée

O amor é a maior das distorções. Com doze anos me apaixonei pela feiosa da escola. Ela me chamava de "Leonardo Molho Pardo", e eu me derretia todo. Sempre comportada, Lola rabiscava garranchos no caderno com as costas arqueadas, como se a enorme testa de sobrancelhas espessas fosse pesada demais para ela. Naquele tempo eu já era incapaz de me aproximar das pessoas, talvez ainda mais, e minha paixão por Lola nunca passou de meia dúzia de corações desenhados a lápis de cor, esquecidos dentro de uma caixa de sapatos. E contudo, meu coração tinha mãos.

Anos depois, olhando para uma antiga foto de fim de ano, percebi a aparência grotesca de minha velha musa. A mandíbula projetada, os olhos esbugalhados por trás dos óculos. Haviam na classe meninas mais bonitas, mas eu não as via. Na verdade, custou-me muito até aceitar que a imagem mental que eu havia conservado de Lola era muito
distante da realidade. A que eu amei jamais existiu ealmente, e a verdadeira me parecia uma total desconhecida. E contudo, meus olhos eram coração.

Mas depois de enxergar a Lola real, tão estranha àquela com a qual eu crescera em sonhos, comecei a pensar. Tudo na realidade não passa de engano. Um engano as vezes agradável, outras vezes mortificante, uma alegoria indulgente com a qual escolhemos viver. E todos os desejos são tiros no escuro, e tentam adivinhar a presa silenciosa. O objeto do desejo é sempre coadjuvante na verdadeira caça, irrelevante para o espetáculo. A própria felicidade (que está na moda) não nos interessa senão pelo desejo. E contudo, meu cérebro são olhos vazados.

Mesmo a morte é distorcida. O medo que sinto não é dela, e sim do esboço. Temo que algum daqueles manuscritos ou messias estivesse certo, que eu venha a ser julgado, condenado, trucidado, para sempre ardendo numa banheira de enxofre incandescente, ou quem sabe servindo de engraxate aos deuses, sorvendo sem pressa a vida eterna. Eterna! Que angústia, meu deus. E contudo, minha vida é morte anunciada.

Comecei a ter medo de que o mundo não passasse de mero placebo para a memória vivida. As distorções eram naturais, a aurora boreal, a pelagem dos animais, o rabo do pavão. Qualquer um poderia viver em sua própria frequência, porém sempre sujeito aos enganos do ambiente. Tentei avisar algumas pessoas. E contudo, minhas mãos eram bocas.

Infelizmente, nada é o que é. Notas num piano, por exemplo, soam tão claras quanto permitido pelas leis naturais, nunca puras e sim aproximadas. Durante anos a indústria tecnológica financiou pesquisas e protótipos que permitissem a construção de um teclado perfeito, onde todas as notas fossem puras, algo nunca antes ouvido. Quando finalmente os engenheiros conseguiram eliminar toda a distorção, o produto foi um fracasso de vendas. Ninguém suportava aquele som tão limpo e claro. O puro era inaudível, irritante, irreal. E apenas os ouvidos absolutos podiam suportar. De repente, ouvi alguém gritar "eu te amo" da porta de um trem se afastando. Desconfiei na hora. E contudo, meus ouvidos eram absolutos.

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