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    MARIANA DIEHL BANDARRA
mariana.bandarra@terra.com.br

Vapor urbano

Sexta, 05 de julho de 2002, 15h12



Observando cautelosamente a janela que com desrespeito se move em círculos pelas mesmas ruas de sempre, macerando pensamentos vãos em tornos de viadutos que implodem no infinito.

"Ah, Porto Alegre!", as mocinhas vociferam às janelas das escolas. As roupas úmidas de começo de semestre pelo suor sanguinário dos professores famintos. O asfalto expelindo seu magma humano no núcleo do que o jornal de amanhã irá declarar como uma grande tragédia.

Anônimos ao redor de uma poça de sangue quente. Fervendo no asfalto molhado. A morte. Um ônibus corta a multidão, as mães apertam suas crias contra si para protegê-las da fumaça. Hoje em dia, nunca se sabe. "Cada dia eles inventam uma doença nova, por isso mesmo lá em casa não entra mais velho. Não tem bicho pior que velho. Depois que a minha sogra saiu lá de casa o cachorro nunca teve mais vermes..."

O ônibus lentamente se arrastando. As mães e as crias e dezenas de rostos esfumaçados e liquefeitos se espremendo contra os vidros. As janelas desacelerando em ritmo de festa. Um grito. O motorista resmunga algo que parece ser um palavrão mas pode ser uma ave-maria. Não dá para passar. Uma senhora no banco dos idosos começa a chorar.

"Meu filho! Meu filhinho! Ai, acode meu menino Jesus!".

"Mas minha senhora, era uma moça, seu filho era uma moça?"

A velha se volta com ódio nos olhos para defender a honra do fruto de seu ventre amém.

"Meu filho nunca foi moça coisa nenhuma. O senhor conhece o meu Vitinho, por acaso? É um moço direito, com tudo nos seus conformes, deixa só ele arrumar um emprego..."

A velha chora cobrindo o rosto com as mãos. A mocinha da escola cospe pela janela. Buzina. Beeeeeeeeeeep. Viaduto. Sirene. Poça de sangue. Cheiro de pobre. Asfalto. Tudo pulsando, queimando, numa grande caçarola de ruas translaçadas em nó cego. Agonizando na fumaça de canos de escape. Toda a vida escapando pelos canos. Rostos sem nome, rastros sem planos. Ardendo nos ônibus e nas escolas. Tudo. ACABA. Consumido por ínfimas partículas de oxigênio, cumprindo pena em uma qualquer dessas celas úmidas que sequer fedem a pobre e sim a nada. O ser urbano em incessante luta para ser humano ainda que primata. O ônibus arranca. A multidão se comove. O viaduto oscila com o peso do ônibus. No último banco do último ônibus, um rapaz com uma pastinha de alça no colo dormita com fones de ouvido a assoprar crenças em sua cabeça dolorida. O boy não tinha nada a ver com a história (boys nunca têm nada a ver com a história), mas o que tem tudo a aver? O viaduto balança mais e mais violentamente, as carcaças se amontoando, todas as personagens do mundo.

Calor. Calor. E fim.

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