» Página inicial

    MARIANA DIEHL BANDARRA
mariana.bandarra@terra.com.br

O Valão de Alicarnasso

Sábado, 08 de junho de 2002, 11h31



Alicarnasso é um desses bairros que se desenvolvem na periferia das grandes metrópoles e acabam crescendo. Crescem por descuido da natureza, sob o adubo dos detritos, enquanto ninguém está prestando atenção. Ao contrário dos grandes impérios antigos, Alicarnasso nunca expandiu suas fronteiras: a pequena vila ao redor do riacho foi crescendo para dentro de si mesma, enraizando suas veias nas próprias fendas, cada vez mais feia e autônoma. Longe demais da Ásia menor, os moradores de Alicarnasso perderam para o tempo sua única maravilha. E com o passar das gerações, o riacho tornou-se valão. Um enorme corte morto de água pútrida, fétida. Os moradores, tão acostumados com o fedor nauseante, atravessam as pontes estreitas sem olhar para baixo. O esgoto, o lixo, as vítimas anônimas e todo o refluxo expelido pelo organismo da cidade repousam no grande mausoléu corrente, sob os transeuntes distraídos. Mas naquela manhã, todos foram pegos de surpresa.

O valão parecia ter voltado à vida. E um por um, os moradores se reuniram para vê-lo passar, carregando não só o resíduo, mas um fenômeno jamais visto. Como numa piada dos deuses, o Valão de Alicarnasso amanheceu vermelho. Ninguém foi trabalhar, pois logo ao raiar do dia, o tumulto interditava as ruelas de modo a impedir qualquer tráfego. Os motoristas desciam de seus carros para olhar. Por uma manhã, a pulsação febril do gueto foi congelada, e a única coisa a se mover eram a água encarnada e seu mistério silencioso, indiferentes ao frisson.

Mas a mudez apoplética da multidão durou pouco. O primeiro a clamar para si o mérito da façanha foi Formoso, chefe do tráfico e da máfia do tamborim, o clube por onde, mais cedo ou mais tarde, todo o dinheiro de Alicarnasso passava. Comentou-se à boca pequena que uma chacina na noite anterior havia aniquilado um grupo de traidores. Dentro de minutos, dezenas de crédulos circulavam com suas versões do incidente. Em maior número, os evangélicos rezavam pelo apocalipse, ladeados por comunistas acalorados, e comerciantes de todos os produtos para o corpo e a alma. Foram vendidos pacotes de banhos terapêuticos nas águas lamacentas, e centenas de frascos contendo o líquido vermelho e viscoso - bom para todos os males. Cada um a seu modo, todos queriam se inteirar com a novidade. De repente, sentiam orgulho de si mesmos, como a mãe solteira que sente seu bebê chutar pela primeira vez.

No entanto os deuses são bufões, e no dia seguinte, pasmem, o valão voltara a ser o mesmo de sempre. Mais uma vez, a multidão concedeu alguns momentos de contemplação ao contra-milagre, sem conseguir esconder a decepção. E do meio dos olhares desolados, um grito jocoso arriscou: "O problema é o sol, não dá pra ver direito!". Desde aquele momento, o povo de Alicarnasso não falou mais no assunto. Tinham sua maravilha de volta, e isso era tudo o que importava.

A água infecta é recomendada por todos aqueles que a provam, e continua sendo engarrafada e vendida em larga escala nas ruelas poeirentas. As moças, antes de um encontro romântico, não dispensam um banho terapêutico nas Águas do Véu Vermelho. E a fama milagrosa das águas de Alicarnasso só faz crescer entre os moradores. A cada dia que passa, descobrem uma nova utilidade para a água milagrosa. Tanto que o Formoso já mandou dizer que vai construir um mausoléu para sepultar os corpos de suas inimizades sem poluir o orgulho ufanista da cidade. O pastor rezará por suas almas.

Leia a crônica anterior

Veja as notícias »


outros canais
  • Exclusivo!
    Televisão, moda, astros e babados
  • Notícias
    Tudo o que acontece no Brasil e no mundo
  • Esportes
    Notícias, fotos e cobertura de jogos
  • Revistas
    Para todas as idades e gostos
  • Copyright© 1996 - 2000 Terra Networks, S.A. Todos os direitos reservados. All rights reserved.