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    ALEXANDRE RODRIGUES
alex.rod@terra.com.br

Reality show

Quinta, 09 de maio de 2002, 20h16



Seu Atílio está olhando para a câmera com a boca cheia de farelo de pão e segurando um copo de café. Diante da lente, incrustrada na parede de madeira, vê o reflexo distorcido do próprio rosto. Há poucos instantes foi à cozinha pegar o café e abriu o armário atrás de açúcar. No fundo da prateleira, deu de cara com a câmera e viu a lente recuar e enquadrá-lo até a cintura. Continua sem fazer nenhum movimento, hipnotizado pelo círculo de vidro, quando dona Iolanda entra na cozinha.

Iolanda, ele gagueja, tem alguém nos filmando.
Hein?

Tem uma câmera na nossa casa. Nós estamos na televisão. Olha aqui.

Mostra a câmera. Do outro lado, em um monitor cujo dono ainda será revelado, seu rosto está grande e torto. Parece ter um grande nariz, sua boca de poucos dentes é como uma caverna escura.
Que televisão?

Não interessa a televisão. Olha aqui, está nos filmando. Deve ser para um programa desses da vida real.

Quando ele fala, um pequeno zumbido sai da câmera, enquanto a lente se afasta e ajusta o foco para o casal parado diante do armário.

Quem pôs isso aí?
E eu lá sei, ele responde.
O que vamos fazer?
Também não sei. Esperar.
Mas esperar o quê, homem de Deus?
Esperar. Só esperar. Isso deve ter um dono. Deve ser algum programa novo. Ainda não nos avisaram. É surpresa.
Sei não. Acho que eles não podem ir colocando câmeras na casa de qualquer um sem mais nem menos.
E o que você propõe? Quebrar a câmera? Deve pertencer a alguém.

À noite, seu Atílio abre um pouco a porta do armário e olha para dentro pela fresta. Quando um pouco de luz invade a prateleira, a lente faz novo zumbido, mas ele não a vê no fundo escuro. Na manhã seguinte, sonha com câmeras que o perseguem pela rua quando acorda assustado. Dona Iolanda grita, encolhida e se cobrindo até os ombros com o lençol. Aponta para a parede.

A uma altura de um metro e meio, há, na parede, uma câmera apontada para a cama. Faz o mesmo jogo de movimentos quando ele se aproxima, esfrega o dedo e deixa uma mancha no vidro. Seu Atílio abre a gaveta de cabeceira e pega um rolo de de fita isolante. Arranca pedaços e cobre a lente, não deixando nada à mostra. Depois, molha o rosto no banheiro.

Mas como foi que entraram aqui?, geme baixinho para si mesmo. Então, olha para a frente e vê outra câmera diante de si. Tira a roupa, mas dá um salto para trás ao abrir a cortina do box. Mais uma câmera está pronta para filmar seu banho. Em volta, ele percebe mais lentes disfarçadas. Atrás do cesto de roupas, nas prateleiras de roupa de banho, dentro do armário. Na cozinha, um zumbido mecânico ajusta o foco enquanto se serve de café e apanha o jornal. A câmera está na parede, à frente da mesa.

Iolanda não entra na cozinha. Seu Atílio lhe leva o café na cama. Conta das novas câmeras.

ELE: Vamos chamar a polícia.
ELA: Mas o que você falou ontem? Pode ser mesmo coisa da televisão. Nós já estamos velhos. Podemos ganhar um bom dinheiro. Pensa no que podemos comprar para os meninos. Deixar de viver de aposentadoria. Sabe quanto andam pagando esses programas? Eu estive pensando: isso pode ser um teste. Ele nos filmam para ver se servimos. Se servir, vão nos contratar.

Os dois não falam mais no assunto durante o dia. Seu Atílio se senta diante da televisão, mas não consegue parar quieto. Muda o tempo todo de canal, esperando uma hora dar de cara com o próprio rosto de fios brancos mal barbeados e o controle remoto na mão. A cada canal, reage com um muxoxo quando vê que aquelas pessoas não são ele, que aqueles cenários transbordantes de cores e plásticos não são a sua sala. Iolanda, diante de seu nervosismo, oferece um chá de camomila. Ele recusa.

Cada visita que entra no apartamento é avisada por dona Iolanda: Vocês me desculpem, mas estão fazendo uma filmagem para a televisão. Reality show, sabem o que é? Eu li que isso se chama um programa-piloto. Primeiro testam o pessoal para ver se dá certo. Depois fazem pra valer. Qual o canal? Desculpa, mas é segredo.

O relatório conta que foram colocadas 27 câmeras para a vigilância da casa de seu Atílio e dona Iolanda. A polícia desistiu do trabalho um mês depois, ao concluir que o casal não tinha nada a ver com Luizinho do Pó, traficante internacional de cocaína que morava no apartamento ao lado.

Havia informações sobre um casal de idosos que guardava drogas. Diz a conclusão final: Não foi possível retirar as câmeras porque o casal nunca mais deixou de prestar atenção nelas. Passaram a dormir em horários separados para que um sempre estivesse sendo filmado. O homem passa os dias olhando fixo para as câmeras. Às vezes faz uma careta ou algum gesto obsceno. Às vezes a mulher dança e em duas ocasiões fez um strip-tease diante das lentes. Como o equipamento não dispunha de um microfone, não foi possível saber o que diziam, mas parece que não se sentiam incomodados.

No meio da leitura do jornal, seu Atílio faz como todos os dias. Abaixa a página de esportes e olha para a lente, esperando o zumbido e o movimento do foco se ajustando para seu rosto. Nada. Com um resmungo, esquece a câmera e volta a conferir os resultados do turfe, para ver se sua sorte melhora.

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