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    MARIANA DIEHL BANDARRA
mariana.bandarra@terra.com.br

O Aranha

Segunda, 25 de março de 2002, 17h06



Enquanto esperava a cerveja, me apoiei no balcão e dei uma olhada. Lá no fundo, absolutamente imóvel, vi sentado o Aranha. Estava diferente, é claro, depois de tanto tempo. Seu olhar atravessando o copo vazio, os dois pares de braços cruzados sobre o peito. Seria impossível não ver, mesmo na penumbra úmida e gordurosa da última mesa. O homem do bar me cutucou com a cerveja. Dei-lhe três moedas graúdas.

Xopinlândia é uma cidade pequena, isolada no meio do Deserto Polar, e consiste num grande Shopping Center, com bancos, igrejas, apartamentos e megamercados. Foi onde eu vi Aranha pela primeira vez. Ninguém jamais soube de onde ele viera, ou seu verdadeiro nome. Aranha foi o nome que as pessoas inventaram. E , olhando para ele, dava para entender o porquê. Eu voltava da escola pelo corredor Leste, com seu ar morno e viciado, e de repente, um som vindo da Praça de Alimentação pareceu tremer os alicerces com sua vibração nervosa e contida. O volume não era alto, mas confundia os sentidos. As pessoas dentro das pizzarias fizeram silêncio. Os olhos todos abertos. Aranha foi o maior guitarrista que eu já vi tocar, um verdadeiro gênio.

A cabeça pendia para a frente, larga e pesada, os olhos fechados, a mão direita inferior sempre segurando um cigarro. Ele não precisava de mais nada. Era uma sinfonia ambulante. O povo de Xopinlândia se empolgou com a novidade. Todos os dias, a cidade se reunia para ver Aranha e ouvir sua música. E o sucesso foi tão grande que a fama rompeu os limites do Shopping e foi parar no continente.

Em Hollywood, mudaram seu nome para Spider e ele passou a vestir couro preto. Uma grande marca de cigarros o colocou nos outdoors de todo o mundo. Casou-se com Lotte Young, uma jovem cantora pop, e lotou concertos por todo o mundo. Aranha lançou cinco discos por uma grande gravadora; seu estilo de guitarra era único, tocava com as duas mãos esquerdas, inventava acordes que nenhum outro mortal poderia fazer, e com a direita imprimia um ritmo próprio a qualquer estilo que tocasse.

Mas enquanto o público lotava seus concertos, embasbacado com aquela figura que ninguém entendia,os jornalistas começaram a duvidar se o que Aranha fazia era mesmo arte. Para os críticos especializados, Aranha não passava de um monstro, um freak, uma fraude. Revistas afirmavam que qualquer um poderia fazer aquilo, se tivesse quatro braços, que a música e o gênio de Aranha não passavam de uma mentira. Uma ONG antitabagismo fez cartazes onde se lia: "FUME E FIQUE ASSIM" sobre uma fotografia de Aranha com os quatro braços abertos, sem camisa. Guitarristas que antes eram considerados virtuosos, viram uma oportunidade de restabelecerem sua reputação. Logo Aranha passou a ser considerado um inimigo da música e dos músicos, bem como da sociedade de modo geral. Aranha nunca foi à mídia se defender, talvez por vergonha de sua condição, talvez apenas por ser um cara tímido. O fato é que o mesmo público que o amava, parou de ir aos concertos, e o sexto disco de Aranha foi um fracasso de vendas. Sua última aparição foi em um programa de auditório. Humilhado pelo apresentador e pela platéia, Aranha nunca mais foi visto. Algum tempo depois, Lotte casou-se com um jovem ator de Hollywood. Aranha não voltou a Xopinlândia, e com o tempo, ninguém mais, no Shopping ou no mundo se lembrava dele.

Peguei a garrafa e andei até a última mesa do bar. Aranha permaneceu imóvel. Falei que para mim ele ainda era o maior guitarrista de todos os tempos, perguntei se ele ainda tocava. Descruzou os braços superiores e tomou um gole da minha cerveja, sem esboçar reação alguma. Talvez tivesse ficado surdo. Estava velho e cansado, e pelo olhar opaco e achatado que ostentava, tinha a sensação de estar ali sentado sua vida inteira, como se nunca tivesse realmente existido.

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