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    DANIEL PELLIZZARI
mojo333@terra.com.br

Mensário da Exinanição

Quarta, 27 de fevereiro de 2002, 14h45



I - AGOSTO

Minha rua tem um guardinha. Ele só aparece de noite, e fica caminhando de uma esquina até a outra, o tempo todo. De vez em quando apita: uma, duas, três vezes. Uma curta e duas longas. Uma longa, uma curta e outra longa. Faz um tempo que tô de bico nessa função toda, mas nunca consegui me ligar na moral dos apitos. Tanto faz. Pelo menos eu captei o que o guardinha faz durante a noite, além de caminhar e usar a porcaria do apito. Ele vende pó. Várias vezes eu tava passando na minha pelo outro lado da rua e vi ele olhar para os lados, meio desconfiado, e tirar uma bucha de pó do meio de uma moita. Teve uma vez em que o cara teve até a manha de cheirar uma carreira em plena rua, em cima do capô de um carro. Um dia, só de sacanagem, eu mijei na moita onde ele esconde o pó. Ele me sacou de longe e saiu correndo, mas não conseguiu me pegar. Depois dessa, eu sempre tomo cuidado pra ele não me enxergar quando tô dando um passeio noturno.

Mas a vida não tá fácil, mesmo. Dia desses me encontrei de novo com a Kelly. É uma mina legal, gostosa e a gente joga limpo. Um curte o outro e era isso, sem stress. Ela chega, a gente bate uns papos, dá uns cheiros e depois dá pra sacar o que rola, né, irmãozinho? Tudo na maior alegria. Aí cada um segue seu caminho e o que rolar pela frente rolou. Só que nesse dia que tô falando eu fui chegando e já de longe vi que ela estava rodeada de vagabundos. Já conhecia alguns de vista. Até o sarnento do Ronei tava no meio. Ali é jogo duro, mas eu já tava perto demais da confusão pra não me meter. Pedi pros caras deixarem ela em paz, riram na minha cara e aí começou a porradaria. Pra encurtar a história: me dei bem. Acertei dois de jeito logo de começo e os outros ficaram assustados e saíram de perto. Tomei umas porradas, fiquei com um corte embaixo do olho, mas saí inteiro. Nesse dia não rolou nada com a Kelly, e depois nunca mais encontrei ela por aí. Acho que ficou com medo.

Desde esse dia eu fiquei meio esquisito. Ontem a moçada me convidou pra sair na noite e fazer um barulho mas não fui. Tava com uma baita dor de cabeça. Se eu dava dois passos parecia que o meu melão ia estourar. Nada feito. Hoje acordei meio dolorido e morto de sede. Bebi uns dois litros de água e resolvi dar uma volta pra ver se melhorava. Tinha uns pirralhos jogando bola no meio da rua. Time com camisa e time sem camisa, mesmo com o vento desgraçado de frio que sempre rola em agosto. Bem quando eu tava passando pela calçada tomei uma bolada forte. Bem na cabeça, que já tava doendo. Na hora me deu uma raiva desgraçada. Fiquei tão puto que resolvi sair na porrada com eles e saí guindando os dois times de uma vez só. Eles saíram correndo, menos um. Um piá dentuço, de pernas finas, com um barrigão de umbigo sujo. Esse se atracou em mim de uma tal forma que não tinha como fazer se soltar. Resolvi tudo tascando uma dentada na orelha do esperto, que deu um grito, me largou e saiu atrás dos outros, com a mão na cabeça cheia de sangue. Cuspi o pedaço da orelha no chão, olhei um pouco pra ver como era e continuei meu caminho.

Agora já é noite e a minha cabeça tá doendo ainda mais. Deve ter sido a bola que eu tomei na testa. Não consigo parar de tremer, também. Deve ser o frio e esse vento que fica ainda mais forte de noite. Ainda tô com muita sede mas não consigo mais beber água, mas isso não faço idéia do porquê nem acho que vou descobrir agora, porque consigo nem pensar direito. Fecho os olhos e tento dormir e pensar no rabo da Kelly, que é uma beleza.

Escuto longe um dos apitos do guardinha. Um curto. Um longo. Um curto. Parou. Ouço uma barulheira, um montão de vozes, abro um olho só porque não consigo nem me mexer direito. Dou de cara com um bando de gente com uns pedaços de pau na mão, berrando sem parar. O guardinha tá bem na frente deles, apitando de novo. Antes o barulho parecia tão longe. Tem uma baba grossa e branca ao redor dos meus beiços. Tento lamber mas não sai, minha boca tá muito seca. Começam a me encher de porrada. Tomo uns chutes, pisam na minha barriga, me dão umas pauladas por todo lado. Berram Cachorro louco, cachorro louco, enquanto o guardinha continua apitando. Ou pode ser só minha cabeça zumbindo sozinha, agora nem sei mais. Levo mais umas pancadas. Não me mexo. Não sinto nada. Só apanho. Tem umas formigas passando bem na minha frente. Abro o outro olho e vejo sair do meio dos outros o guri magricelo que eu mordi de tarde. Ele tem um esparadrapo na orelha, um sorriso no rosto e um tijolo na mão.

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