Ano-Novo, Vida Nova

Uma noite de Papai Noel - por Marina Gold

Anoitecera muito cedo naquela capital européia em que me encontrava de passagem. O frio do inverno derrubava alguns pequenos flocos de neve sobre a praça iluminada, repleta de pessoas esperando dar meia-noite — era véspera de Natal.

Sentei-me num banco e fiquei observando o movimento: no centro da praça enorme, artistas se apresentavam em grupos: uma mulher exibia um minúsculo cachorro fazendo acrobacias; em outro grupo, um homem se apresentava com tochas: era o engolidor de fogo. Mais além, músicos entoavam canções natalinas ao som de pequenos sinos.

Eu fazia uma retrospectiva do ano que passara e me parecia haver cumprido todas as missões a mim indicadas. Era o meu momento de paz. Porém, de repente, toda a minha sensibilidade aflorou e, num impulso, me levantei e comecei a procurar algo que nem sabia o que era. Vasculhando em torno percebi um rapazinho muito jovem, devia ter no máximo 18 anos, olhando-me fixamente.

Ele se aproximou de mim e pediu um dinheiro. Minha generosa mão brasileira, acostumada com a pobreza que motivam pedidos assim, se encaminhou para a bolsa. Mas, antes mesmo de abri-la, me dei conta de que estava num país desenvolvido, onde ninguém pede esmolas. Numa intuição que veio direto da vidência com a qual convivo e trabalho, pedi em inglês, língua em que ele me abordara: “Mostre-me suas mãos!”. Quando ele as abriu, percebi imediatamente as marcas escuras nas pontas dos dedos, indicando preparo da droga. Não senti medo. Apenas falei algo que põe a tremer o mais destemido dos drogados: “Eu jamais faria uma coisa dessas comigo”.

Ele arregalou os olhos claros, os cabelos loiros em desalinho cobrindo a testa, e me pareceu que algo havia se aberto na sua cabeça. Continuei falando: “É Natal! Vá para casa. Faz meses que você não dá notícias. Pense na alegria de sua mãe e irmã se você chegar agora lá. Elas estão muito tristes sem conseguir encontrá-lo. Você, o mestre em se esconder”.

Encarei-o. Ele estava surpreso com o que ouvia e as lágrimas começaram a correr pelo seu rosto. Na certeza da força do impacto, insisti: “Vamos juntos até sua casa. Faço questão de te acompanhar até lá”. Ele balançou a cabeça, revelando a universalidade do não e argumentou: “Eles vão me jogar fora. Eles estão cansados de mim e não vão querer dividir comigo a ceia do Natal”.

Então, com ousadia e numa atitude vigorosa, que não costumo adotar, completei: “Meu amigo, você não está entendendo nada. No meu país, tão longe daqui, sou uma bruxa. (Na verdade sou uma esotérica, usei a palavra para causar maior surpresa). Uma bruxa poderosa, acostumada a enfrentar situações assim e mesmo outras, bem piores. Por isso, com serenidade posso afirmar que você tem mais uma chance. Seguramente, com certeza você tem mais uma chance. Onde fica sua casa? É para lá que você deve ir e eu quero te acompanhar”.

Ele me apontou uma rua estreita e tranqüila e eu comecei a caminhar ao lado dele. Passadas algumas esquinas, entramos por uma travessa à direita, estreita, medieval, e ele me apontou um pequeno prédio. “É no terceiro andar”. Preparei-me para a subida, pois não havia elevador. Ao chegar ele bateu à porta e uma moça veio atender. Aos gritos de “Peter, Peter... Mamãe, o Peter está aqui. Vovô. Venham correndo”, ele foi recebido e todos o rodearam com beijos e abraços.

Olhei pela porta aberta a mesa posta, o pão, o vinho, o assado. Eu estava em paz. Saí devagar, sem nenhum ruído, a neve lá embaixo me castigando o rosto e corri. Não queria me despedir. Achei melhor que ele pensasse que do nosso encontro restava algo de irreal. Voltei para a praça, feliz. Sentia que dessa vez eu havia sido o Papai Noel.

Terra