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A personalidade é conflitante e por isso mesmo predestinada a evocações de tempos em tempos. Sobre o Marquês de Sade já se debruçaram nomes da literatura como Antonin Artaud, Nietzsche, Simone de Beauvoir, Octavio Paz e mais recentemente Camile Paglia; o teatro lembrou o libertino em peças como Marat/Sade, de Peter Weiss, texto que também o empurrou para o cinema numa das melhores construções do universo sádico, na adaptação de Peter Brook de 1966. Há outras e famosas incursões, como a de Luis Buñuel em L'Age d'Or e de Pasolini e seu Saló ou os 120 Dias de Sodoma, ambos sobre o mesmo livro, 120 Dias de Sodoma. É na esfera cinematográfica que habitualmente se dá seu retorno.
Há até uma certa semelhança no fio condutor das narrativas, que mesmo ao capturarem anos diferentes da trajetória de Sade acabam iluminando fatos iguais e recorrentes de sua biografia. Assim, o homem sentenciado a viver em prisões, hospitais e asilos pelo acaso de ter uma mulher devotada - e não ser levado à guilhotina em pleno terrorismo pós-Revolução Francesa - assume seus intentos de uma ou outra forma, encenando peças com os loucos ou editando clandestinamente seus escritos. É na escolha da personalidade de Sade e suas nuances que começa o conflito. Philip Kaufman fez a sua de forma radical. Jacquot preferiu um meio-tom, um consenso do que já se tem como usual, sem perder a idéia do mito. Defesa
do personagem
Esse
painel histórico parece fazer falta no filme de Kaufman. Ele é um diretor
que assumidamente se interessa pelo amor nos limites, em sua concepção
mais libertária e provocativa, a lembrar a adaptação de A Insustentável
Leveza do Ser e a versão para o relacionamento de Henry Miller e Anaïs
Nin em 'Henry e June'. Não seria irônico dizer que ele alcançava ali o
sofrimento sádico dos personagens de ambas as histórias. Achou esse mesmo
veio no texto teatral, que aponta como principal mote do período de Sade
em Charenton sua aproximação de uma doméstica (Kate Winslet), misto de
musa, aprendiz e salvadora. Pois é ela quem encaminha os escritos para
fora do asilo, permitindo sua edição. Sade já tinha grande parte de sua
obra publicada - 120 Dias de Sodoma, A Filosofia na Alcova
- quando assinou ali sua sentença definitiva com Justine.
Qualquer tentativa de definir taxativamente as razões da filosofia de Sade, os teóricos o sabem, é temerosa. E Kaufman talvez só se salve de tal destino porque a tantas inverte o jogo e passa a iluminar mais as mentes que sofreram a influência do autor, no caso o padre e a jovem musa. Não deixa de ter coragem no exame dessa influência. Impõe uma cena de necrofilia no mínimo rara no cinema, e muito mais num filme também de intenções comerciais. Não vai, claro, ao limite de Pasolini, com suas perversões e escatologias para Saló que desafiam até hoje olhos e estômagos mais sensíveis. O Sade de Pasolini tinha status político e servia à metáfora de uma Itália que parecia guinar novamente ao fascismo. Desassociado de um objetivo, um painel histórico, um argumento de cunho artístico, o autor pode se transformar em alegoria e parecer tão artificial e imaginário como num conto de fadas. Se até isso Hollywood consegue, é melhor banir Sade e deixá-lo na obscuridade.
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Título Original: Quills |
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