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Woody Allen retrata amor ao jazz em "Poucas e Boas"



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Todos conhecem a paixão de Woody Allen pelo jazz. Ele já deixou de comparecer à festa do Oscar para tocar clarineta na sua já folclórica "jam" em Nova York. Foi para celebrar essa face que a diretora Barbara Kopple realizou Wild Man Blues, documentário que seguia uma turnê do diretor e sua banda pela Europa. No mais, a cinematografia de Allen, por si só, é também um painel musical, a lembrar homenagens como A Era do Rádio. A reverência, no entanto, nunca rendeu um posto tão digno e de gosto pessoal como em Poucas e Boas, o novo Allen que estréia no Brasil. Nem tão novo. O filme é de 1999, foi exibido no Festival de Veneza, mas os títulos do diretor andam esquecidos na prateleira da distribuição brasileira, como aconteceu com Celebrity, o trabalho anterior. Depois disso, o cineasta realizou Small Time Crooks, comédia ligeira, à moda antiga. Permite desenhar com os outros dois títulos um momento bem mais despojado do diretor, que parece estar se consolidando como seu cinema atual.

Pois Poucas e Boas também é isso. Apresenta um realizador menos ligado às questões existenciais que sempre traduziu com brilhantismo para uma figura masculina histérica e em crise, enfim, contemporânea. Mas é curioso como ele ainda transfere para o protagonista - quando não é ele mesmo o ator, caso em Small Time Crooks - muitos de seus trejeitos e visão de mundo, a lembrar o personagem de Kenneth Branagh em Celebrity, um assumido alter ego. Talvez não se enxergue muito de Allen em Emmet Ray, o papel principal aqui vivido em grande performance por Sean Penn. Para reforçar esse clima de pessoalidade, intimidade mesmo com o biografado, ele sacou de um recurso, mais uma vez, brilhante.

Emmet Ray, o guitarrista de jazz que abala os anos 30, não existe. É fruto da imaginação e paixão de Allen por um grande músico, este sim real, o cigano Django Reinhardt, a quem Ray presta tributo durante toda sua trajetória no filme. Assim, nos depoimentos que se intercalam à história fictícia, tanto de Allen como de músicos e especialistas, ele faz crer que Ray é referência (quem sabe até melhor que Django) e por tabela homenageia e idealiza o universo que tanto ama. Imprime tanta verdade à sua criação que um desavisado sairia da sala certo de haver um lugar para Ray na história do jazz. E o ambiente em que surge e cresce não poderia aparecer em cores mais vibrantes e verdadeiras, com a trilha sonora autêntica assinada por Howard Alden e Bucky Pizzarelli, sob a supervisão de Dick Hyman, para versões, claro, de Django Reinhardt.

A construção dessa biografia fictícia vai a detalhes geniais. Emmet Ray é um sonhador megalomaníaco, beberrão de ego infindável, que corre atrás das oportunidades onde elas surgem, seja de músico acompanhante para vozes em ascensão ou de penetra num concurso caipira de novos talentos. Por conta disso, vive em altos e baixos, com empresários que não dão conta de suas irresponsabilidades e gastos dispendiosos. Um deles, numa ponta impagável do diretor John Waters, o demite dando início a uma das crises de Ray. Sem se abalar, o músico que se faz por vezes de cafetão e tem uma cleptomania bem a calhar - chega a roubar um cinzeiro numa festa da comunidade negra - vai passear na praia e conhece a jovem e tímida Hattie (a ótima Samantha Morton). Ironia, a moça é muda. Deficiência que só faz promover ainda mais a galhardice do protagonista. Com a personagem, o diretor concretiza a atmosfera de nostalgia, com sua atriz a recuperar o charme das estrelas do cinema mudo e o talento a depender apenas das expressões.

Nesse ponto, Allen já se encontra em seu universo habitual. Está em casa, como se diz. Seus toques de mestre passam a significar pequenas impressões e piadas ligeiras que consagram a personalidade de fanfarrão do músico. Sabe-se, por exemplo, que Ray desmaiou nas vezes em que viu pessoalmente seu ídolo, Reinhardt. Também que nunca abandona dois hábitos muito curiosos, um de atirar em ratos num lixão e outro de ficar sentado vendo trens passarem. Mais adiante, essas serão situações recuperadas para o deleite do espectador, uma delas no genial recurso de repetir três vezes um fato, cada um motivado pela lenda criada em torno de Ray, e confirmada nos depoimentos.

São detalhes que mostram a paixão real de um artista que se vale de duas frentes para saudá-la. Allen nunca perde de vista o principal personagem do filme. O jazz, claro, está sempre em primeiro plano, em "standards" como "Sweet Sue", "All of Me", "I’m Forever Blowing Bubbles", e faz com que tudo em redor se mova em função da música. A personalidade de Ray nada mais é que a soma de vários atributos consagrados das grandes estrela da música - a começar pela vida de boemia e a genialidade auto-atribuída, representada na cena em que Ray manda construir uma lua de papelão para descer com ela no palco.

O ambiente em que o instrumentista trafega traduz uma época e uma sociedade que o próprio cinema americano tratou de eternizar no imaginário do público. Em contraponto com a liberdade e desleixo de Ray com sua carreira, vislumbra-se a organização da Máfia, em que o músico é acolhido como em qualquer outra oportunidade de seguir carreira. Sedutor e mulherengo, costuma receber convites de mulheres em plena apresentação e atrai o olhar de milionárias. É o caso da personagem de Uma Thurman, típica aventureira do período, que encontra em Ray um amante e ideal perfil para um livro.

São várias as citações de Allen para além do mundo da música, e elas se concentram no próprio cinema, mas num período de maior encanto e ingenuidade, como nas comédias dos irmãos Marx ou de Buster Keaton. Não por acaso, Emmet Ray também tem seu parceiro ao mesmo tempo esperto e mais racional. O diretor parece buscar pelo cinema um universo que também foi particular e especialmente feliz para o jazz. Faz isso baseando-se no humor fino dos diálogos, às vezes pelo pastelão, como é de sua lavra, mas talvez sem a ferocidade que consumou sua carreira. Nesse sentido, pode desapontar os que esperam o cineasta neurótico, iconoclasta e cheio de manias de antigamente. Aqui Allen só se debruçou sobre uma delas. Mas ninguém sairá do cinema sem ter a idéia da exata importância que ele atribui à música e o quanto é divertido partilhar, pelo cinema, de sua paixão. (Orlando Margarido/ Gazeta Mercantil)


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Poucas e Boas

Título Original: Sweet and Lowdown
País de Origem: EUA
Ano: 1998
Duração: 95 min
Diretor: Woody Allen
Elenco: Sean Penn, Constance Shulman, Kellie Overbey, Darryl Alan Reed, Marc. Damon Johnson, Ron C. Jones










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