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'Sofri bullying e ouvi piadas horríveis sobre como ela morreu': o trauma e a impotência de crescer com uma mãe alcoólatra

Becky teve que lidar com os problemas do alcoolismo da mãe na infância e, mais tarde, com as consequências disso na vida adulta.

19 fev 2021 - 17h31
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Becky ao lado da mãe na infância
Becky ao lado da mãe na infância
Foto: Arquivo pessoal / Becky Ellis Hamilton / BBC News Brasil

Crescer com um pai ou mãe que tem problemas de alcoolismo pode afetar os filhos de várias maneiras e profundamente.

Filhos de alcoólatras apresentam maior probabilidade de sofrer de depressão, ter problemas na escola e sofrer abusos e violência doméstica. E muitos descobrem que ainda sofrem essas consequências quando adultos, como Becky Ellis Hamilton.

Era sábado à noite, Becky, com 13 anos na época, estava ajudando a mãe, Pat, a se arrumar para sair.

Ela passava a maioria dos fins de semana com o namorado e deixava a menina em casa com a avó.

Enquanto se arrumava, Pat sentou no vaso sanitário para a filha colocar delicadamente suas lentes de contato — em seguida, a menina passou suavemente uma sombra lilás e batom rosa na mãe.

Pat era uma mulher alta, bonita e parecia jovem aos 53 anos, diz Becky.

A mãe estava animada naquela noite, tentando brincar e fazer piadas. Mas a filha estava chateada com ela.

"Estava muito frustrada. Só queria dizer: 'Eu sei que você tem bebido, por que está fazendo isso? Há anos que não bebe'", recorda.

Mas ela não disse nada.

E, com a maquiagem pronta, Pat deu um beijo de despedida em Becky e saiu.

Garrafas escondidas

Desde muito pequena, ela sabia que a mãe bebia — embora Pat não bebesse na frente dela e nunca falasse sobre o assunto.

Becky ainda se lembra do cheiro que pairava em torno da mãe, um cheiro que parecia vazar por seus poros.

"Dava para perceber na hora, ela simplesmente mudou, assim que começou a beber, ela se perdeu", diz.

Pat quando era jovem
Pat quando era jovem
Foto: Arquivo pessoal / Becky Ellis Hamilton / BBC News Brasil

Pat escondia garrafas de vodca em vários lugares da casa. Debaixo do colchão, entre as toalhas no armário, na descarga do banheiro.

Ela bebia escondido até cinco dias por semana.

Quando Becky encontrava uma das garrafas escondidas da mãe, ela derramava a vodca e substituía por água. Em seguida, devolvia a garrafa cuidadosamente ao seu esconderijo. Mas nenhuma das duas falava sobre isso.

Havia uma regra tácita na família: não tocar no assunto.

Proteção

"Eu não queria colocar minha mãe em perigo. Tinha medo de que alguém descobrisse e me afastasse dela. Eu sabia que minha mãe precisava de mim", diz Becky.

Ela sentia que era sua responsabilidade protegê-la.

"Se eu não estivesse lá, minha avó não conseguiria."

Becky nem sequer chegou a contar aos amigos mais próximos o que estava acontecendo — e só os convidava para dormir na sua casa nos fins de semana, quando sua mãe estava fora.

"Era um arranjo que não havia sido discutido, mas que convinha a todos", explica.

Na verdade, as únicas pessoas que Becky escutou falar sobre o problema da mãe com a bebida foram sua avó e suas meia-irmãs, filhas do primeiro casamento de Pat. Elas eram muito mais velhas e foram morar com o pai após a separação.

"Acho que minha avó tinha vergonha, não da minha mãe, apenas do estigma. Ninguém sabia o que fazer com a minha mãe e simplesmente não existia o apoio que há agora."

"Minha mãe era alcoólatra e isso era um grande segredo", conclui.

Becky, aos 6 anos, em uma viagem com a mãe
Becky, aos 6 anos, em uma viagem com a mãe
Foto: Arquivo pessoal / Becky Ellis Hamilton / BBC News Brasil

Becky se acostumou com o comportamento imprevisível de Pat. Encontrar sua mãe vomitando ou inconsciente não era incomum.

E se acostumou com as decepções. Uma noite, ela e a avó foram buscar Pat no trabalho — uma loja de roupas íntimas — para ver as luzes de Natal, mas a empolgação da filha logo foi embora quando viu o olhar da mãe e ouviu sua voz arrastada.

Às vezes, nas noites em que a avó jogava bingo, Becky ficava sozinha com a mãe depois da escola e fazia o possível para tentar manter a mãe longe da bebida.

"Eu ficava sempre preocupada e constantemente nervosa, porque uma vez que ela tomasse uma taça, era o fim, eu tinha que ficar em alerta, cuidando dela a noite toda", afirma.

Quando Pat percebia que não havia álcool em casa, pedia à filha que a acompanhasse até o mercado.

"Quando voltávamos e no meio do caminho ela dizia: 'Ah, esqueci uma coisa, espera aqui', eu sabia que ela voltaria por causa do álcool", lembra Becky.

Silêncio

Às vezes, quando Pat estava embriagada, ela chorava, dizia à filha que só queria ser amada e repassava todas as coisas ruins que haviam acontecido com ela. A menina ficava ouvindo e garantia à mãe que a amava.

Na sequência, ela tentava convencer a mãe a ir para a cama.

"Quando morávamos na casa da minha avó, eu dividia o quarto com a minha mãe, então eu tinha que deitar na cama com ela e esperar ela adormecer. Depois, saía de fininho e ligava para minha irmã do telefone no corredor", recorda.

Mas, se Pat acordasse, ficava irritada ao perceber que Becky não estava lá.

"Ela começava a chorar e dizer: 'Você não me ama' ou 'você vai me deixar'. Então eu tinha que voltar para a cama e começar tudo de novo", revela.

Quando a mãe adormecia ou desmaiava bebendo, Becky se sentia desconfortável demais para dormir, mesmo que já fosse tarde e ela estivesse cansada. De vez em quando, ela segurava um pequeno espelho na frente do rosto da mãe para verificar se ela ainda estava respirando.

Na manhã seguinte, ainda cheirando a álcool, Pat agia como se nada tivesse acontecido.

"Ele me dava um abraço se sabia que havia feito algo de errado, que havia me aborrecido ou algo dramático havia acontecido na noite anterior", recorda.

Segundo a filha, essa era a maneira de Pat reconhecer o que havia feito sem tocar no assunto.

"Era estranho, para ser honesta, era como se ela fosse uma pessoa diferente."

Quando estava sóbria, Pat era "a mãe mais incrível e perfeita".

"Tão amável, divertida, engraçada", acrescenta Becky.

E houve períodos em que ela se saiu relativamente bem, reduzindo o consumo de álcool.

Passado doloroso

Independentemente de quanto tempo ela tenham passado em clínicas de reabilitação (em uma dessas ocasiões, disseram a Becky que sua mãe "ficaria na casa de um amigo"), ou quanta força de vontade ela tenha reunido para ficar longe da bebida, Pat parecia não conseguir afugentar os demônios que a levaram a se automedicar.

"Quando ela estava bêbada, me contava como foi abusada na infância e dizia que havia sido alguém da família", revela Becky.

Às vezes, as coisas ficavam tão difíceis para Pat que ela tentava acabar com tudo.

Becky se lembra de pelo menos três tentativas de suicídio — e acredita que a mãe provavelmente tenha tentado várias vezes antes de ela nascer.

"Tenho certeza de que houve mais, minha mamãe chegou a um ponto de desespero", diz ela.

Uma noite, quando Becky era criança, não devia ter nem sequer 5 anos, suas irmãs estavam passando o fim de semana na casa dela e seu pai havia saído.

"Mamãe começou a beber, ficou num estado crítico e desapareceu com um monte de comprimidos", lembra a filha.

Ela conta que não conseguiram encontrá-la, então as irmãs de Becky foram procurar o pai dela.

"Lembro que me colocaram no carrinho de boneca e meu pai falou: 'Levem ela para a casa da sua avó'", relata.

Elas saíram caminhando, em meio à escuridão, e Becky se lembra de ter visto uma ambulância.

Pat foi encontrada caída no banco de um parque e levada com urgência para o hospital. Quando teve alta, ninguém explicou a Becky o que havia acontecido, tampouco comentaram nada a respeito.

A luta

Embora o casamento dos pais não tenha durado e sua mãe não tenha parado completamente de beber, quando Becky tinha 13 anos ela achou que as coisas estavam melhorando. A mãe tinha arrumado um namorado bacana, Brian, e só bebia nos fins de semana, quando estava na casa dele.

"Tenho mais lembranças felizes dela nessa época", diz a filha.

O fato de Pat ter conhecido alguém que realmente se importava com ela, com sua filha e sua mãe, "deu a ela ainda mais motivos para tentar", avalia Becky.

Em um desses dias de sobriedade, ela viu a mãe deixar uma marca positiva em seu diário. Como aquela que os professores colocam quando um exercício está correto.

"Não falamos sobre isso, mas me lembro de tê-la visto contar até 10. E de ficar muito feliz que finalmente a minha mãe estava melhorando. Eu pensei: 'Sim! Ela conseguiu.'

Mas logo depois algo mudou. As marcas no diário se transformaram em pontos de interrogação. Pat estava bebendo novamente.

Naquele sábado à noite, depois que Becky terminou de maquiar a mãe, ela foi para a casa de Brian. É possível que tenha bebido mais no caminho, diz a filha, já que Brian disse a ela para dormir e saiu sozinho.

Pat tentou parar de beber quando começou a namorar Brian
Pat tentou parar de beber quando começou a namorar Brian
Foto: Arquivo pessoal / Becky Ellis Hamilton / BBC News Brasil

Na manhã seguinte, por volta das seis ou sete horas, o telefone tocou e a avó acordou Becky.

"Acorda, Becky. Tua mãe se matou", ela gritava sem parar.

Becky saiu correndo até a casa de Brian. E parou na rua quando viu as ambulâncias. Estava descalça e apenas de camisola.

"Foi como uma espécie de sonho, mas eu sabia que isso ia acontecer, estava me preparando", relata.

Segundo ela, Pat sofreu uma falência de órgãos grave e desabou no chão da casa de Brian, morrendo "quase instantaneamente".

A mãe tinha níveis extremamente altos de álcool na corrente sanguínea, e um legista atestou morte acidental.

"Parece horrível, mas você fica um pouco entorpecido porque teve que fazer cara de corajosa desde que era criança", diz Becky.

"É triste, mas essa era a minha realidade."

O jornal local Scunthorpe Telegraph publicou um artigo sobre a morte de Pat pouco depois.

"Nenhum dos meus amigos sabia de nada até ela morrer, mas isso me colocou em uma posição na qual me via obrigada a aceitar que tínhamos esse enorme segredo que eu considerava normal", diz Becky.

Quando ela voltou para a escola, todo mundo sabia.

"Sofri um pouco de bullying e ouvi algumas piadas horríveis sobre minha mãe e como ela morreu. E as pessoas diziam que a culpa era minha", recorda.

Becky conta que faltou apoio formal da escola.

"Teve um professor que me puxou num canto um dia e perguntou o que estava acontecendo — então eu sempre recorria a ele quando começava a me sentir mal."

Lidar com a morte

No dia em que Becky desmaiou na aula de matemática, a professora sabia exatamente o que estava acontecendo (era o primeiro aniversário da morte da mãe).

"Eu não sabia como lidar com a situação nem o que fazer. Simplesmente não conseguia processar, era horrível", afirma.

Para ela, a vida girava em torno de cuidar da mãe — e agora ela havia partido.

Anos depois, Becky ainda está processando a perda. Ela se sente frustrada com o "silêncio tóxico" que rondou tanto o abuso que Pat sofreu na infância quanto seu subsequente alcoolismo. Mas ela não culpa ninguém.

"Era algo geracional na época", diz.

Becky, muitos anos depois, com o marido Jay
Becky, muitos anos depois, com o marido Jay
Foto: Arquivo pessoal / Becky Ellis Hamilton / BBC News Brasil

Becky gostaria de ter conversado com a mãe ou procurado ajuda para ela em outro lugar.

"Provavelmente, meu único arrependimento é não ter feito isso."

"Na época, não me atrevi porque tinha botado na cabeça que se falasse com ela sobre isso, só iria piorar (a situação). Mas se eu tivesse falado com alguém de fora do círculo familiar, talvez eu tivesse tido força para conversar com ela, e conversar poderia ter sido tudo o que era necessário."

Vida adulta

Já se passaram quase 18 anos desde que Pat morreu, e estar perto de pessoas alcoolizadas ainda deixa Becky desconfortável.

"Eu fico assustada e então me torno muito controladora, porque sinto que tenho que assumir esse papel maternal. Não consigo relaxar ou parar de tomar conta, fico hiperconsciente", diz ela.

Há dois anos, na véspera do seu casamento, o noivo de Becky, Jay, estava comemorando com alguns drinques.

"Percebi que era um gatilho para mim e deixei isso arruinar o dia seguinte", diz ela.

Jay não bebe álcool desde então.

"Ele tem sido incrível", afirma Becky.

E, desde novembro do ano passado, ela também parou — na verdade, ela nunca bebeu com frequência porque sempre teve medo, no fundo, de acabar como a mãe.

Pouco depois da morte de Pat, Becky foi diagnosticada com transtorno bipolar e, embora sempre tenha tomado seus medicamentos, não estava realmente se cuidando.

Então, dois anos atrás, na época de seu casamento com Jay, ela percebeu que precisava de ajuda, tanto para a depressão quanto para ser capaz de processar o trauma que viveu na infância.

Por meio de pesquisas, ela descobriu organizações que apoiam pessoas que cresceram com pais alcoólatras.

"Achava que era a única pessoa que encontrava garrafas de vodca na descarga do banheiro até descobrir essa comunidade e conversar com pessoas que passaram pela mesma situação", afirma.

E isso tirou um grande peso de cima dela.

Becky agora tem uma rede de pessoas com quem pode conversar e que se identificam com suas experiências de infância. Ela também descobriu um novo propósito por meio do treinamento para apoiar dependentes em suas próprias jornadas de recuperação.

"Eu me encontrei e minha confiança cresceu", diz ela.

Becky ressalta que a mãe gostaria que ela fizesse o que a deixa feliz.

"E o que me deixa feliz é ajudar pessoas como ela."

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