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'Se tivéssemos isolamento acima de 60%, poderíamos sair mais rápido', diz ex-ministro Temporão

Para titular da pasta da Saúde no Governo Lula, enquanto o número de casos e de óbitos continuar crescendo, não há como o Brasil pensar em sair da pandemia

29 mai 2020 - 14h10
(atualizado às 14h28)
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José Gomes Temporão, ministro da Saúde no segundo mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, diz que foi importante o Brasil ter iniciado a quarentena por causa do novo coronavírus em março, mas aponta que, como os índices de isolamento social estão abaixo do ideal, o quadro brasileiro vai se prolongar. Ele alerta ainda que pode acontecer uma tragédia se as pessoas forem liberadas para voltarem à atividade normal sem que a situação esteja normalizada.

Com dois meses da epidemia de covid-19, indo para o terceiro mês, como o senhor vê o quadro brasileiro da epidemia?

Primeiro, foi importante termos começado em março o isolamento social, mas o grau em que se deu no País foi insuficiente. Olha, se tivéssemos, desde o início, conseguido manter um grau de isolamento social acima de 60%, entre 60% e 70%, poderíamos sair mais rápido. Como temos mantido esses número em torno de 40% e 50%, isso nos obriga a ficar mais tempo nesse processo.

Por quê?

Porque enquanto o número de casos e de óbitos continuar crescendo, não há como pensar em sair. Isso seria dramático. Pode acontecer uma tragédia, que é você liberar as pessoas para voltarem à atividade normal e piorar, exatamente o que aconteceu na Itália. Em Milão, foi exatamente isso que aconteceu. As pessoas desprezaram o que a ciência falava, o que a saúde pública determinava, saíram e tiveram de voltar numa condição de fechamento total por muito tempo. Com um impacto na economia muito dramático. Esse é o nosso problema. A taxa de disseminação, que gente chama cientificamente de R, deve estar abaixo de 1 e nós estamos em torno de 1,3 ou 1,4, isso varia de Estado para Estado, município para município. Mas a média no Brasil está em torno de 1,3.

E a situação nos hospitais?

Esse é o ponto dois. A gente fala muito de equipes de saúde, UTI, respirador, hospital. E esquecemos o Programa Saúde da Família. Temos 300 mil agentes de saúde comunitários no Brasil que poderiam e deveriam ter sido utilizados de outra maneira, desde o início. Com os agentes comunitários, os médicos e enfermeiros, que trabalham no Saúde da Família, treinados, capacitados, testando, isolando os casos confirmados, orientando, indo de casa em casa para detectar as pessoas assintomáticas, nós teríamos aí, dados, do ponto de vista de qualidade e de controle, muito importantes. Ainda há tempo para fazer isso.

Nesta conjuntura?

É o ponto três. Tão importante quanto ter leitos, tecnologia, sistema de saúde de organizado, é você ter liderança e coesão, olhar estratégico e convocar a sociedade para ter um esforço único na história do País. E a gente não tem isso. O que temos hoje é uma fragmentação. Estamos há mais de um mês sem Ministério da Saúde. Dois ministros foram trocados, está havendo uma grande troca nos cargos técnicos no ministério, de pessoas que nunca trabalharam com saúde pública e que não têm nenhum conhecimento do Ministério da Saúde. Então, pela primeira vez na história da República, temos uma situação muito grave, do ponto de vista sanitário, onde o gestor federal, cujo papel é fundamental, sob a liderança do presidente da República, deveria estar coordenando esse ação de liderança, de harmonização e de chamar a sociedade para um esforço coletivo, ele se omite. Ele o tempo todo se contrapõe, entrando em conflito com a autoridade sanitária, passando para a sociedade mensagens dúbias sobre a gravidade da doença, sobre o respeito ao isolamento social. Isso é um fator único, no mundo, porque é o único país que está fazendo isso, e que fragiliza muito a capacidade do brasileiro de enfrentar essa situação.

Como saberemos a hora de sair? Estamos agora chegando no pico. Isso vai a junho, julho.

Olha, isso seria é futurologia neste momento. Nós estamos com dois problemas. Se você multiplicar o número de casos oficiais por 12, você não vai errar muito. Hoje estamos aí com mais de 3 milhões, caminhando para 3,5/4 milhões, na verdade. E por que isso? Por causa da subnotificação. Estamos testando pouco, estamos testando apenas as pessoas sintomáticas que procuram o serviço de saúde. E a gente sabe que, nessa doença, 85% das pessoas não vão ter sintomas ou vão ter sintomas muito leves, que não vão exigir que elas procurem o sistema de saúde. Então, você tem uma subnotificação muito grande. Por isso que é difícil falar da nossa taxa de letalidade, o número de pessoas mortas em relação ao número de pessoas infectadas. A gente não sabe o número, só estima. Um estudo da Universidade Federal de Pelotas calculou que se a gente multiplicar por 12, não vamos errar muito. E o número de óbitos também está defasado. Aí nem é tanto a subnotificação. É que o processo de registro do óbito atrasa. Como está morrendo muita gente de síndrome respiratória aguda grave, que podem ser causadas por vários vírus, você só registra o óbito quando tem a conclusão do exame laboratorial positivo. Então, isso está fazendo com que muitos óbitos entrem no sistema de maneira atrasada. Como você não tem uma ideia muito clara nem do número de casos nem do número de real de óbitos, - e por que isso? - porque um dos pré-requisitos para gente saber onde está e você começar a ter uma redução sustentável no tempo de casos e óbitos. Quando você começa a ter isso, de forma sustentada, significa que já se atingiu o ápice e começa a descer a curva. Mas nós estamos meio perdidos.

Ministro, e estamos sem remédio e sem vacina. Como o senhor avalia o aspecto da pesquisa?

Olha, hoje temos 120 projetos no mundo para chegar a uma vacina. Nunca houve esforço assim. Uma vacina demora para entrar no mercado entre três e cinco anos. Mas como temos as empresas investindo muito dinheiro, acredito, com otimismo, que possamos ter num tempo mais curto. Mas aí nós temos três problemas. Primeiro: vamos ter de superar desafios, superar os poucos conhecimentos sobre o vírus, para poder chegar a uma vacina que funcione. Mas vamos, por hipóteses, imaginar que a gente consiga chegar ainda neste ano a uma vacina. Aí vem o segundo problema. Temos de produzir bilhões de doses. Ela pode precisar de um reforço, o que seria ainda mais dramático. Então, o mundo não tem capacidade de produzir da noite para o dia bilhões de doses. Você vai ter de ter prioridades. Grupo de risco, idosos. E ainda temos um outro problema adicional: todo mundo sabe que se a gente tiver uma vacina, a situação está resolvida. Mas a questão é: o mundo vai precisar de bilhões de doses. E como produzir isso? Uma fábrica de medicamentos pode produzir milhões de comprimidos por dia; uma vacina demora meses para ser produzida.

Tem um terceiro problema?

Aí vem o terceiro problema. Quem chegar a uma vacina, e espero que sejam mais de uma empresa, com muita sorte podemos ter isso, é a questão da propriedade intelectual e preço. Na assembleia mundial da saúde, nesta semana, a China defendeu que se conseguir chegar a vacina será considerada patrimônio da humanidade, o que significa que qualquer laboratório que possa produzir a vacina tenha autorização para fazê-lo. Claro que isso, em tese, ajudaria muito a aumentar a capacidade de produção e o acesso dos países, principalmente aos países mais pobres da Ásia, da África e da América Latina. Mas os EUA se colocaram em posição contrária. Então, a questão é a vacina vai ser considerada patrimônio da humanidade e vai ser permitido que todo mundo produza?

O Brasil tem alguma vantagem neste cenário?

Entre os países em desenvolvimento, somos o único que tem duas grandes fábricas de vacina, o Instituto Butantan e o Instituto Bio Manguinhos, da Fundação Oswaldo Cruz. Mas digamos que a empresa faça questão da patente e estabelece um preço. Qual será o preço? Toda essa discussão só está começando. Há um longo caminho. Temos que olhar, no médio prazo, este ano inteiro, e provavelmente grande parte do ano que vem, sem vacina. E sem vacina, eu registraria ainda a hipótese de alguém chegar a um medicamento, que seria uma grande solução. Mas nós não temos esse medicamento. Nem nada de curto prazo.

E a cloroquina?

Hidroxicloroquina, esqueça. Assinei uma nota com nove outros pesquisadores aqui no Rio. Essa questão provavelmente vai ser judicializada porque é um atentado contra a saúde pública você transformar a população brasileira em cobaia. Não há nenhuma evidência científica que justifique o uso em larga escala ou uso nos primeiros sintomas dessa droga. É muito grave isso. Vai ter muita gente se movimentando para questionar isso do ponto de vista legal, como uma ameaça à saúde pública. Ou seja, sem que o governo federal, Estados e município e a sociedade como um todo sentassem para enfrentar essa situação de maneira articulada e coordenada. A gente teria muita capacidade política, econômica, logística para enfrentar essa situação. Fora isso, você tem de respeitar a ciência, respeitar a saúde pública, ter diálogo.

Mas o senhor vê condições políticas atualmente para isso acontecer?

Pouco provável, muito pouco provável. Tudo o que temos visto, as pessoas, tudo vai no sentido contrário. Isso é desolador.

Estadão
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