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Saúde obriga médicos a notificarem a polícia para realizar aborto legal em vítimas de estupro

Mudança em regras sobre aborto legal ocorre alguns dias após o caso envolvendo uma criança de 10 anos estuprada e engravidada pelo tio no Espírito Santo

28 ago 2020 - 13h55
(atualizado às 19h11)
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BRASÍLIA - O Ministério da Saúde publicou nesta sexta-feira, 28, portaria que obriga médicos e profissionais de saúde a notificarem a polícia ao atenderem a vítimas de estupro que desejam realizar um aborto legal.

A interrupção da gravidez é permitida em três situações: quando a gravidez é resultado de violência sexual, se não há outro meio de salvar a vida da gestante e em casos de fetos com anencefalia.

A portaria publicada nesta sexta-feira, 28, afirma que é obrigatório o aviso à autoridade policial "dos casos em que houver indícios ou confirmação do crime de estupro".

Professora da Universidade de Brasília e pesquisadora do Instituto Anis de bioética, a antropóloga Debora Diniz afirmou, em publicação nas redes sociais, que mudança é "perversa". "Revoga portaria de aborto legal e confunde profissionais de saúde com profissionais de segurança pública", escreveu Diniz.

A mudança em regras sobre aborto legal ocorre alguns dias após o caso envolvendo uma criança de 10 anos estuprada e engravidada pelo tio no Espírito Santo. Os dados da menina foram vazados pela extremista Sara Giromini nas redes sociais. No dia em que ela foi internada, em Recife (PE), para interromper a gravidez de forma legal, um grupo contra o aborto foi para a frente do hospital e tentou impedir o procedimento.

A nova portaria muda regras de 2005 do ministério. A pasta também fez alterações no "termo de consentimento" que deve ser assinado pela vítima. Este documento apresenta uma lista de riscos e desconfortos causados pela interrupção legal da gravidez, mas passou a dar mais detalhes sobre efeitos da operação às vítimas de estupro.

A nova regra também determina que os profissionais de saúde devem "informar acerca da possibilidade de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia, caso a gestante deseje, e essa deverá proferir expressamente sua concordância, de forma documentada."

Para Débora Diniz, a mudança impõe medidas de "maus tratos" às vítimas de estupro. "Uma delas é o uso de tecnologia médica para assustá-las: a oferta de visualizar o embrião ou feto não é para cuidar da vítima, mas para ideologizar o aborto."

Diretor do Hospital Pérola Byington, unidade de referência em aborto legal, o ginecologista André Malavasi afirma que algumas vítimas de estupro podem se sentir constrangidas ou ameaçadas em buscar o atendimento com a nova regra.

Malavasi diz que o seu hospital seguirá atendendo da mesma forma e que não espera grande diminuição da procura pelo aborto legal na unidade, mas teme o impacto fora de centros de referência. "Para nós vale a palavra da vítima. Não é necessário boletim de ocorrência ou prova criminal, mas pedimos para ela assinar o termo (previsto desde 2005 em portaria)."

O ginecologista aponta que há subnotificação de casos de violência sexual e lacunas na troca de informações com a vigilância sanitária. "A estatística policial hoje já é maior do que a da saúde (sobre estupro), quando deveria ser o inverso".

Damares negou mudanças

Na quinta-feira, 27, dia anterior à publicação da portaria, a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, negou que o governo federal proporia mudanças na legislação sobre aborto legal. "Não, o governo Bolsonaro não vai apresentar nenhuma proposta para mudar a legislação atual de aborto. Isso é um assunto do Congresso Nacional. O Congresso Nacional que decida por lá", disse.

Em junho, o ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello exonerou técnicos e bolsistas da pasta que assinam nota técnica sobre acesso à saúde sexual e reprodutiva na pandemia. O documento havia sido distorcido pelo presidente Jair Bolsonaro em publicação nas redes sociais. Ele sugeriu que houve uma tentativa de legalizar o aborto.

O documento não defendia a legalização do aborto. O ministério, na nota, orienta, entre outros pontos, para a manutenção de procedimentos de aborto legal.

Na portaria de 2005, agora alterada, não havia determinação de avisar a polícia sobre o pedido de aborto legal de uma vítima de estupro. A norma anterior exigiria que a mulher assinasse um termo de responsabilidade com advertências sobre possível crimes de falsidade ideológica e de aborto, caso a violência sexual não tivesse acontecido. Já a equipe médica atestava que o pedido de interrupção legal da gravidez estava de acordo com o ordenamento jurídico.

Em nota, o Ministério da Saúde argumenta que a portaria publicada nesta sexta-feira, 28, adequa normas da pasta à lei 13.718/2018, que tornou o estupro um crime apurado por Ação Penal Pública Incondicionada, ou seja, "sem depender de prévia manifestação de qualquer pessoa para ser iniciada", segundo nota do órgão.

Além disso, diz a Saúde, a portaria segue agora a Lei das Contravenções Penais (Decreto Lei nº 3.688/1941), que prevê punição para funcionário ou médico que deixa de comunicar à autoridade competente sobre crimes de Ação Penal Pública que não depende de representação.

O Conselho Federal de Medicina (CFM) afirmou que ainda está analisando a portaria.

Questionado se a portaria não seria uma maneira de intimidação das vítimas de estupro, inviabilizando que as mulheres e meninas solicitem o aborto legal previsto para esses casos, o Secretário-Executivo do Ministério da Saúde, Élcio Franco, afirmou que a interrupção da gravidez tem seu marco legal. "A portaria vem para adequar uma normativa do SUS a uma legislacao existente. O objetivo principal do legislador foi proteger a integridade da gestante. Aquele que violentou deve ser denunciado e as mulheres não devem se acovardar", afirmou em coletiva de imprensa.

Reação no Congresso

As deputadas Jandira Feghali (PCdoB-RJ), Fernanda Melchionna (Psol-RS), Perpétua Almeida (PCdoB-AC), Alice Portugal (PCdoB-BA), Sâmia Bomfim (Psol-SP), Luiza Erundina (Psol-SP), Lídice da Mata (PSB-BA), Natália Bonavides (PT-RN), Áurea Carolina (Psol-MG) e Erika Kokay (PT-DF) apresentaram projeto de decreto legislativo para suspender a portaria do Ministério da Saúde. "Qualquer norma que ofereça constrangimentos para o exercício de um direito deve ser prontamente contestada. As mulheres vítimas de violência sexual são constantemente revitimizadas ao enfrentar o caminho para fazer valer sua opção pelo aborto legal", afirma o projeto das deputadas.

Estadão
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