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O grande desafio da megalópole com 29 milhões de habitantes que está ficando sem água

Déli deve se tornar a maior cidade do mundo, mas já enfrenta uma preocupante escassez de água. Como ela poderá abrigar mais moradores?

18 nov 2018 - 16h16
(atualizado às 16h36)
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O tuk-tuk balança e espirra lama na rua, e minha guia Jaswinder Kaur ri. "Não confio neste motorista", diz. "Mas confio em Deus!".

Foto: BBC News Brasil

Estamos a caminho do acampamento Jai Hind, lar de 1.200 famílias no sul de Déli, na Índia. Ali, mais do que em qualquer outro lugar da capital indiana, a vida gira em torno da água. Carros-pipa carregam água ao local sete vezes por dia e, até recentemente, encher alguns reservatórios com 50 litros de água era uma tarefa difícil, explica Kaur, que trabalha para o Fórum para Conservação e Melhoria dos Recursos Organizados (Force, na sigla em inglês), uma instituição de caridade tentando melhorar o saneamento e o acesso à água limpa na Índia.

Brigas já ocorreram ao redor dos veículos, e apenas os mais fortes conseguiam assegurar água suficiente para abastecer sua família por alguns dias. Isto deixou idosos, doentes e grupos étnicos marginalizados com pouca água para beber, se banhar e lavar suas roupas.

Em Jai Hind, as coisas estão lentamente melhorando. O acampamento é classificado como uma "favela notificada", o que significa que o governo reconhece sua presença em terreno público e se compromete a cuidar do saneamento, sistemas de drenagem de água, abastecimento de alimentos e outras necessidades básicas da população local. Aqui, a administração pública se uniu à outra instituição, WaterAid India, para construir um bloco de sanitários comunitários - reduzindo o problema da defecação a céu aberto, melhorando a segurança das mulheres e diminuindo o desperdício de água.

No entorno do bloco de sanitários, está a casa de Fatima, uma mulher esbelta e decidida, que nos recebe com uma xícara de masala chai quente. Ela ganha um salário relativamente bom para gerenciar o banheiro público, que abrange treinar pessoas a como usar o vaso sanitário e como manter o espaço limpo. E, ao mesmo tempo, cuida de uma pequena tenda de chá.

"Tenho quatro filhos, e cuidar de uma família de seis requer muito dinheiro", diz Fatima. "Meus filhos estão crescendo, então quero que eles tenham educação e, mais tarde, uma vida melhor do que a que estou tendo."

Gerenciar o pequeno banheiro comunitário é uma forma de atingir esse objetivo, mas Fatima, que usa apenas seu primeiro nome, não está trabalhando somente para o bem de sua própria família. Seu papel é resolver alguns dos problemas sistêmicos que afetam a diversificada, multi-religiosa e multiétnica comunidade Jai Hind.

Ela criou um sistema para garantir que todas as famílias no acampamento tenham acesso igualitário à água. Cada família ganha um recibo numerado para receber sua porção de água semanal do carro-pipa. Orgulhosa, ela me mostra o registro, e explica como os conflitos por água pararam de ocorrer desde que a ideia foi implementada.

Embora uma distribuição mais justa desta preciosa commodity já tenha mudado milhares de vidas para melhor, a água ainda ocupa grande espaço nas mentes de moradores de Jai Hind. Ao mesmo tempo que as pessoas ainda precisem de mais água potável, o excesso de chuvas nos meses de julho a setembro provoca - devido à falta de um sistema de drenagem - poças tóxicas que trazem doenças, como malária, dengue e chikungunya.

Quando saio do acampamento sob uma forte chuva, Kaur aponta para fileiras de edifícios elegantes que se elevam sobre os barracos. Em Déli, as favelas e os complexos de luxo geralmente ficam lado a lado. Segundo ela, as mulheres locais precisam dos trabalhos de limpeza oferecidos pelas famílias ricas, e as classes médias também precisam cada vez mais de ajuda doméstica.

Problemas com água

Embora Jai Hind pareça o oposto da imagem da agitada e progressista Déli que as autoridades querem projetar, as dificuldades refletem a conturbada relação da capital com a água.

Um relatório recente do think tank patrocinado pelo governo, o Instituto Nacional para a Transformação da Índia (NITI Aayog), alerta que 21 cidades indianas, incluindo Déli, Chennai, Bengaluru e Hyderabad, sofrerão com a falta de águas subterrâneas até 2020, afetando 100 milhões de pessoas. Embora isso não indique que a capital secará, já que recebe água de Estados vizinhos, "Déli está tirando muita água do solo e não está lhe devolvendo a quantidade suficiente", afirma Amitabh Kant, diretor-executivo de NITI Aayog.

O estudo coordenado por ele analisou como vários Estados indianos se comportam na gestão de seus recursos hídricos, um tema que "passa por vários departamentos governamentais" e inclui questões diversas como o manejo do solo, práticas de irrigação, saneamento, contaminação da água, água potável para a zona rural e abastecimento urbano.

De maneira contraintuitiva, o estudo mostra que Estados que tradicionalmente enfrentam escassez de água - incluindo Gujarat, Madhya Pradesh e Andhra Pradesh - são mais eficientes em garantir água potável para a população urbana e rural, em empregar a água da chuva em colheitas e técnicas avançadas de irrigação, entre outras medidas. E ao contrário, os Estados do nordeste, que se beneficiam de recursos abundantes, têm pontuação mais baixa no índice desenvolvido para o estudo. Déli está no coração dessa região, entre Haryana e Uttar Pradesh.

"O relatório dá nome aos bois", afirma Kant, que acredita que expor a performance dos Estados ao público pode influenciar as administrações locais a agir. "Esses são Estados onde vivem 50% da população e onde a agricultura se desenvolve. Portanto, se eles não agirem de acordo, a segurança alimentar está em risco para toda a Índia".

Sob esse cenário, Déli poderia ser uma das primeiras vítimas. Segundo a ONU, a cidade com 29 milhões de habitantes deve ultrapassar Tóquio e se tornar a maior metrópole do mundo em 2028. Mas à medida que a cidade indiana se expande, seu frágil sistema de recursos hídricos se aproxima de um colapso. Déli depende fortemente da água que recebe de Estados vizinhos, o que pode provocar tensões políticas, especialmente nas estações mais secas e quente, quando o abastecimento geralmente recua.

"Em longo prazo, seja no caso de Déli ou de qualquer grande cidade, bombear água indiscriminadamente, excedendo a capacidade de recarga natural, vai simplesmente acelerar o esgotamento da água estocada nos aquíferos", afirma Priyam Das, professor associado da Universidade do Havaí e especialista em governança hídrica. "Com as mudanças climáticas, também haverá mudanças de padrões de tempo e de fluxos de água na superfície. Com isso, a regulação da água subterrânea para proteger os recursos hídricos pode ser a chave para evitar uma crise."

Esse cenário, diz Das, "é um tanto apocalíptico, mas, se acontecer, poderia provocar sérios conflitos pelos escassos recursos. Conflitos por água não são novos, mas poderemos testemunhar a violência provocada pela escassez em uma escala sem precedentes".

Máfia da água

Apesar da ameaça iminente, "ninguém monitora onde e quando os poços são perfurados, mesmo que em teoria fosse necessária uma permissão", afirma Asit Biswas, especialista em recursos hídricos globais e professor visitante do Instituto Indiano de Tecnologia em Bhubaneswar. "Mesmo que haja um problema, você paga alguém algumas centenas de rúpias, e o problema vai para debaixo do tapete."

Biswas não está se referindo aos poços, mas ao lado mais obscuro da indústria da água na Índia. Ele fala da "máfia da água" que assola Déli como um segredo aberto. Parte da classe política não tem interesse em mudar o status quo, segundo ele, porque "se beneficia do sistema existente".

"Quanto mais escassa a água pública, maior a demanda de fornecedores privados", explica Biswas. "O que acontece é que alguns políticos ou autoridades na Delhi Jal Board (a agência governamental responsável pelo abastecimento de água na região) usam os carros-pipa para vender água como uma empresa privada".

As principais vítimas dessa suposta extorsão são comunidades desfavorecidas que vivem em "favelas não notificadas", assentamentos informais habitados principalmente por imigrantes não oficialmente reconhecidos pelo governo e que não receberam nenhum apoio prático. Eles têm que pagar pelo abastecimento diário de água de seus próprios bolsos, além de viverem sob constante medo de serem evacuados.

O que ficou conhecido como o "golpe dos carros-pipa" na Índia em 2016 e 2017 supostamente envolveu várias autoridades do governo que estariam usando sua posição pública para lucrar ilicitamente. Embora uma investigação oficial tenha sido instaurada, várias fontes afirmaram à BBC que Déli ainda sofre às custas dessa relação perniciosa entre os serviços público e privado de água. Procurados pela BBC, o Jal Board e o departamento de investigação da Índia não comentaram o assunto.

A crise de água em Déli está inexoravelmente ligada ao aumento populacional, inflado por imigrantes de Estados próximos. A maioria termina se assentando nas favelas que vão se alastrando. De acordo com o último censo, em 2012, mais de um milhão de pessoas vivia em favelas de Déli na época, e o número provavelmente cresceu drasticamente nos seis anos seguintes.

Guardiões da água

Escondida na área industrial de Kirti Nagar, no oeste de Déli, uma pequena comunidade de imigrantes oferece um relance de um futuro alternativo, onde a água é igualmente distribuída e chega às casas das pessoas, mesmo em favelas. Aqui, as varandas são decoradas e os prédios antigos são pintados de azul, amarelo e rosa. Um grupo de mulheres bem vestidas me mostra o local, e me conta como a água agora é entregue por torneiras conectadas a um rede de canos que chega a cada esquina do complexo. Esta é uma das primeiras favelas notificadas de Déli onde o governo apoia um sofisticado sistema de abastecimento de água.

De início tímida, Krishnavati, que também só usa seu primeiro nome, concorda em me mostrar como as torneiras funcionam - demonstrando o design especial com o objetivo de evitar o desperdício e potenciais danos. Cada torneira tem duas válvulas, então se uma quebra, a água não jorra, e o sistema continua funcionando.

Antes desse sistema, Krishnavati lembra que uma jornada de várias horas era necessária para abastecer sua casa com água. Agora, ela consegue simplesmente abrir a torneira e esperar que o recipiente se encha enquanto ela continua o trabalho doméstico. "A qualidade da água também melhorou", diz. "Antes a gente contraía doenças de tempos em tempos, agora isso não acontece mais".

Krishnavati e suas amigas são os guardiães das redes de água, responsáveis por manter os canos e torneiras funcionando, notificando autoridades se algo quebrar ou se houver uma potencial contaminação. Nas favelas, não é incomum as pessoas quebrarem os canos e instalarem um motor para bombear mais água para suas casas. E é algo que as autoridades de fora do complexo têm dificuldade de detectar e consertar, o que dá às mulheres um papel especial em disseminar um senso de propriedade coletiva de seu precioso recurso.

O sistema ainda está longe de ser perfeito. Especialistas concordam que o abastecimento intermitente de água significa que os canos vão se deteriorar mais rápido, mais água será desperdiçada e ao final os custos serão muito maiores do que se a água estivesse continuamente disponível por meio do sistema. Mesmo assim, o experimento está se provando um sucesso. Não apenas porque ele previne a escassez de água e reduz o risco de doenças em áreas carentes mas também porque mobiliza as pessoas a terem orgulho de sua comunidade e a lutarem por um bem comum, algo que pode trazer mudanças em vários outros campos.

Um dos aspectos mais incomuns da gestão da água em Kirti Nagar é que não há ninguém a cargo de vigiar o sistema - uma posição que poderia abrir brechas para os tipos de corrupção já descritos em todos os lugares da cidade. Quando me despeço, Kaur aponta para uma parede que foi pintada com os nomes de todas as mulheres trabalhando no projeto. "Nossa força está trabalhando como um grupo", Kaur afirma. "Se todo mundo é um líder, o líder nunca morre."

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