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Ministério da Saúde tem 9,8 milhões de testes parados por falta de insumos

Reagentes são necessários para processar amostras dos pacientes, mas governo diz ter dificuldade de encontrar produto no mercado internacional; secretários dizem que produtos não têm sido entregues com regularidade

30 jul 2020 - 09h20
(atualizado às 11h50)
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BRASÍLIA - Quase seis meses após decretar o estado emergência pela covid-19 no País, o Ministério da Saúde ainda guarda em seus estoques 9,85 milhões de testes, segundo documentos internos da pasta aos quais o Estadão teve acesso. O número é quase o dobro das cerca de 5 milhões de unidades entregues até agora pelo governo federal aos Estados e municípios. O exame encalhado é do tipo PT-PCR, considerado "padrão-ouro" para diagnóstico da doença.

O principal motivo para os testes ficarem parados nas prateleiras do ministério é a falta de insumos usados em laboratório para processar amostras de pacientes. Isso porque, segundo secretários de saúde locais, não adianta só enviar o exame, mas também é preciso distribuir reagentes específicos.

O governo federal comprou os lotes de exames, mas sem ter garantia de que haveria todos esses insumos, indispensáveis para usar os testes. Estes produtos não são entregues "com regularidade" pela pasta, afirma o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass).

Questionado pela reportagem, o Ministério da Saúde disse que não recebeu alertas de Estados sobre falta de produtos para os exames. Relatórios internos da pasta, no entanto, já apontavam o problema. A ministério afirmou que teve dificuldades para encontrar todos os insumos no mercado internacional, mas que está estabilizando a distribuição conforme recebe importações de fornecedores, sem informar quantos reagentes foram entregues.

A escassez causa uma espécie de efeito cascata nos Estados, que ficam com seus locais de armazenamento lotados com os testes recebidos à espera dos demais produtos. "No primeiro momento não tínhamos testes porque estavam escassos. A Fiocruz começou a produzir, além de laboratórios privados. Aí começou a faltar tubo, material de extração, depois de magnificação", afirma o professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) Gonzalo Vecina. "Agora está faltando só competência. Falta só disposição do Estado para distribuir, coletar e processar", acrescenta ele, ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e colunista do Estadão.

Dados apresentados na sexta-feira pelo ministério mostram que o Brasil realizou 2,3 milhões de testes do tipo RT-PCR para a covid-19, sendo 1,4 milhão na rede pública e 943 mil, na privada. No mesmo período, o País fez outros 2,9 milhões de testes rápidos, que localizam anticorpos para a doença, mas não são indicados para diagnóstico.

Como o Estadão revelou no dia 13, a entrega incompleta do kit faz o Brasil se distanciar da meta de exames para a covid-19. Além da falta dos reagentes, o ministério entregou poucos equipamentos para coletar e armazenar amostras de pacientes. Dados da pasta mostram que só 1,6 milhão de cotonetes (swab) e 873,56 mil tubos de laboratórios foram enviados até a semana passada - número bem abaixo dos 5 milhões de testes.

Secretário executivo do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde, Mauro Junqueira reforça que os testes ficaram estocados pelo Brasil pela falta de todo o equipamento para a análise. "Não tinha o material de extração. Chegou incompleto. Foi feito um acordo e (a compra) está sendo centralizada. Já melhorou muito nas últimas semanas", disse.

Técnicos do ministério chegaram a projetar que o País realizaria 110,5 mil testes por dia, mostra ata do Centro de Operações de Emergência (COE) da pasta, de 4 de junho. A média diária em julho, porém, foi de 15,5 mil exames, segundo último boletim epidemiológico da Saúde.

Em ata do COE, de 4 de junho, técnicos da pasta colocaram como "pontos críticos" a falta de insumos para coleta e processamento das amostras.

Apesar do atraso nos diagnósticos, o ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello, já minimizou a falta de testes. "Criaram a ideia de que tem de testar para dizer que é coronavírus. Não tem de testar, tem de ter diagnóstico médico para dizer que é coronavírus. E, se o médico atestar, deve-se iniciar imediatamente o tratamento", afirmou em entrevista à revista Veja no último dia 17.

A falta de testagem se reflete no alto número de casos sem diagnóstico adequado. Até 18 de julho, o Brasil registrou 441.194 internações por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), sendo 213.280 para covid-19. Há ainda mais de 80 mil internações em investigação e 141,6 mil classificadas como síndrome "não especificada".

Na opinião da presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, Gulnar Azevedo, os exames encalhados no ministério evidenciam a falta de integração entre governo federal, Estados e municípios.

De acordo com dados do ministério, obtidos pelo Estadão, a União já fechou contratos para receber 23,54 milhões de testes RT-PCR, por R$ 1,58 bilhão. A pasta ainda espera a entrega de 8,65 milhões de unidades para depois repassar a Estados e municípios. Sobre o estoque de kits parados, o Ministério da Saúde disse que os Estados "não possuem capacidade para armazenar uma grande quantidade de insumos de uma só vez". E portanto, "os testes em estoque são distribuídos à medida que os Estados demandam".

Rastreamento de contatos

Atas do COE revelam ainda orientações ao ministério para criar formas de rastrear quem teve contato com pacientes do vírus. Em 29 de maio, técnicos sugeriram criar um aplicativo para monitorar quem está contaminado e dez de seus contatos próximos. No mesmo encontro foi feito o alerta de que, sem distanciamento social, os efeitos da pandemia duram até 2 anos, como revelou o Estadão.

O aplicativo jamais saiu do papel. Em 4 junho, o centro de operações tratou da necessidade de realizar "inquérito de acompanhamento do perfil sorológico da população" e rastreamento de quem teve contato com infectados nas últimas 48 horas. A ideia também não prosperou e o ministério não confirma a continuidade do financiamento da Epicovid19-BR, principal pesquisa sobre a incidência do coronavírus na população brasileira, conduzido pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel).

A escassez de exames dificulta a continuidade de programas de municípios para diagnóstico da covid-19 e rastreio de contatos de pacientes. Em São Caetano do Sul (SP), pessoas com sintomas da doença podem buscar atendimento por uma plataforma online. O primeiro contato é feito de forma remota com estudantes estudantes de medicina e, se for o caso, uma equipe de saúde realiza uma visita ao morador da cidade.

O próprio paciente coleta amostras para o exame RT-PCR. Se confirmada a infecção, ele é acompanhado remotamente por 14 dias e orientado a buscar o hospital, caso os sintomas se agravem. "É de se estranhar que haja mais de 9 milhões de testes em estoques, quando diversas cidades estão sofrendo com a falta de recursos para manutenção de seus programas", afirma o médico Fábio Leal, professor da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS) e um dos idealizadores do projeto.

Procurado para explicar o elevado estoque de exames, o Ministério da Saúde disse que os Estados "não possuem capacidade para armazenar uma grande quantidade de insumos de uma só vez". "Portanto, por questões logísticas, os testes em estoque são distribuídos à medida que os estados demandam", diz a pasta em nota.

O ministério disse ainda que a média diária de exames passou de 1.148 em março, mês da primeira morte pela covid-19 no País, para 15,5 mil em julho. Sem dar detalhes, a pasta argumenta que está "finalizando" uma política para o rastreamento de contatos de pessoas infectadas.

Estadão
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