Historicamente, vemos líderes políticos minimizarem pandemias, diz professor da Johns Hopkins
Marty Makary, especialista em saúde pública, afirma que discursos como os de Jair Bolsonaro são 'um grande desserviço' e um risco aos mais vulneráveis
SÃO PAULO - Minimizar a pandemia do novo coronavírus, como têm feito os presidentes Jair Bolsonaro e Donald Trump, não é uma novidade na história das pandemias. O médico Marty Makary, professor de política e gestão de saúde da Universidade Johns Hopkins, diz que líderes políticos têm agido assim desde os tempos da gripe espanhola, em 1918, o que constitui "um grande desserviço" para a sociedade, principalmente aos mais vulneráveis.
Defensor da transparência, o cirurgião e especialista em saúde pública estuda temas que envolvem avaliação científica de novas intervenções médicas e o impacto das doenças crônicas e dos custos com saúde nas pessoas de baixa renda. Para ele, rebaixar a gravidade da covid-19 "é muito perigoso" àqueles que estão sob risco elevado, que podem se cuidar menos. "Desde o início da pandemia no Brasil, houve um claro conflito de interesse entre os médicos respeitados e os líderes políticos que têm minimizado o vírus", avalia Makary.
No último dia 20, o médico participou do Congresso Nacional de Hospitais Privados, em que falou sobre seu livro The Price We Pay (O Preço que Pagamos, em tradução direta), que mostra como as pessoas podem economizar dinheiro em cuidados de saúde ao mesmo tempo tem um serviço de qualidade. Um livro anterior, Unaccountable (Inexplicável, na tradução), toca no tema dos gastos excessivos e muitas vezes desnecessários no sistema de saúde, indicando a transparência como um meio para revolucionar isso.
Em conversa exclusiva com o Estadão por telefone, Makary falou sobre os temas das publicações, os impactos da pandemia, o perigo de minimizá-la e como a transparência pode ajudar governos e sociedade a lidar com a crise de saúde. Confira a seguir.
Seus livros, Unaccountable e The Price We Pay, parecem revelar o que os hospitais e o sistema de saúde querem esconder das pessoas. O que eles escondem e por quê?
Eu acho que a assistência médica é composta por boas pessoas trabalhando em um sistema ruim. O que as pessoas deveriam saber é que existe grande valorização na qualidade e no preço do cuidado, portanto, está tudo bem ter variação no preço do tratamento se você for transparente para os pacientes. Assim, eles podem entender onde buscar atendimento com base no preço antecipado. Mas, infelizmente, o sistema de saúde tem funcionado de forma desonesta.
Na área de saúde, o problema número um é que não temos mercados competitivos. As pessoas desejam transparência em qualidade e preços. E quando se trata de qualidade, as pessoas deveriam saber que devem obter uma segunda opinião se não se sentirem bem com a recomendação inicial, caso seja algo que não seja urgente. Cerca de metade de todas as segundas opiniões é diferente da primeira. Quando se trata de cuidados cirúrgicos, de 10% a 20% das vezes, a segunda opinião pode nem mesmo recomendar a cirurgia, quando esta foi recomendada pelo primeiro médico. Essas são as questões sobre as quais tenho tentado educar o público.
Você pesquisou ou tem conhecimento sobre os sistemas de saúde em outros países para ver se o processo é o mesmo ou se há diferenças?
Sim, os problemas são crescentes em todo o mundo e, em algumas partes, cuidados médicos desnecessários estão em níveis de epidemia. Por exemplo, no Brasil, a taxa de cesariana em hospitais privados é de aproximadamente 90%, mas sabemos que o parto vaginal, quando possível, viável, seguro, é melhor para o bebê, para os pulmões do bebê, para o trato gastrointestinal do bebê e é melhor para a mãe. Então, o problema do tratamento excessivo é desenfreado em todo o mundo. Nos Estados Unidos, tivemos um alerta com um problema relacionado à prescrição excessiva de opióides, que é apenas um exemplo de como os medicamentos são usados em excesso. Muitos outros remédios são usados da mesma forma, mas não têm as mesmas consequências perigosas. Às vezes, isso é motivado pela forma como os pacientes lidam com coisas e às vezes é motivado por médicos recomendando coisas que os pacientes não deveriam ter feito. Às vezes, é com boas intenções, mas com má ciência. Eu me sinto péssimo por ter prescrito opióides por muitos anos. Fiz isso com boas intenções e ciência ruim.
Você acha que a pandemia tornou esse cenário pior?
A pandemia acelerou a inovação em muitas indústrias e também acelerou na saúde. Agora, nós reconhecemos que não precisávamos fazer algumas das coisas que costumávamos fazer, como exigir que os pacientes venham para exames simples de rotina. Aprendemos que podemos ser seletivos ao decidir quem deve comparecer pessoalmente e quem pode receber atendimento médico por telefone, por vídeo. Também vimos alguns tipos de cuidados médicos reduzidos sem diferença de impacto nos pacientes.
No início do mês, o órgão regulador do Brasil (Anvisa) suspendeu os testes clínicos de uma potencial vacina contra a covid-19. Esse imunizante tem causado brigas entre o presidente e o governador de São Paulo. O caso levantou suspeitas de interferência política na agência reguladora. Quais são os riscos de uma situação como essa para as instituições e para a sociedade?
Desde o início da pandemia no Brasil, houve um claro conflito de interesses entre os médicos respeitados e os líderes políticos que têm minimizado o vírus. A mortalidade pelo coronavírus é maior para aqueles com comorbidades ou condições médicas crônicas e uma nova pesquisa feita esta semana por minha equipe de pesquisa na Johns Hopkins mostra que a morte pela covid é ainda mais forte por comorbidades do que pensávamos anteriormente. Então, o que acontece é que, quando você tem indivíduos de baixo risco falando sobre o vírus não ser um problema, é muito perigoso para as pessoas que estão sob risco elevado - e elas não estão sendo bons líderes.
Você viu uma grande tensão política aberta entre especialistas, médicos e o presidente, o que tem sido muito óbvio para muitos dos Estados Unidos. Eles estão minimizando o risco. Se alguém pegar uma infecção, há 99% de chance de melhorar sem fazer absolutamente nada e eles podem pensar que a infecção não é um problema. Mas fazer isso é um grande desserviço, é deturpar os dados e a ciência do vírus.
Historicamente, com epidemias que remontam a 1918 com a gripe espanhola, os líderes políticos minimizaram o risco e a comunidade médica. Muitos continuaram dizendo, durante toda a pandemia que pode ter matado 50 milhões ou mais de pessoas em todo o mundo: "está quase no fim, não se preocupe, não é uma grande ameaça". Nosso trabalho como médicos é ser uma voz para os que não têm voz, representar aqueles que são vulneráveis e em risco de doenças que não podem falar por si próprios. Historicamente, os médicos têm defendido as crianças, os idosos, os deficientes. E esse é o trabalho da comunidade médica.
Nesse ponto, qual a importância da transparência, não só em relação a gastos no sistema de saúde, mas de dados relacionados à pandemia e aos testes clínicos?
As pessoas têm o direito de saber sobre os dados de um medicamento que podem tomar e, se elas vão acreditar nos líderes que dizem que é seguro, terão mais confiança se os dados estiverem disponíveis. Os dados, muitas vezes, são realmente propriedade das pessoas. Muitos dos esforços para realizar os testes ou pagar pelos medicamentos é dinheiro que vem dos contribuintes. Portanto, os contribuintes possuem esses dados e têm direito aos dados.
Nós tivemos problemas no Brasil com a divulgação de dados por parte do governo federal. Além de as pessoas terem direito aos dados, como a transparência pode ajudar governos e sociedade a lidarem com a pandemia?
Acho que está claro que não podemos confiar nos políticos para nos dizer sobre o estado da pandemia e, portanto, as pessoas têm de tirar conclusões com base nos dados reais. Quando você padroniza formas de divulgar dados, muitos líderes respeitados na medicina podem emitir opiniões. Mas quando não temos os dados, você depende de um número menor de pessoas e há menos confiança no sistema público.