PUBLICIDADE

Falta de valorização da ciência prejudicou combate à pandemia, diz presidente do Einstein

Um ano após registro do primeiro caso de covid no País, detectado no hospital, Sidney Klajner critica a postura de médicos, do CFM e de governantes que negaram evidências científicas no combate à doença

22 fev 2021 - 16h18
(atualizado em 23/2/2021 às 15h27)
Compartilhar
Exibir comentários

SÃO PAULO - Há pouco menos de um ano, em 25 de fevereiro de 2020, o Brasil registrava seu primeiro caso de covid-19. O paciente, vindo da Itália, teve o diagnóstico confirmado no Hospital Israelita Albert Einstein, que viu o número de internados explodir nos dois meses seguintes, chegando a 135 em abril. Passado quase um ano do início da pandemia no País, o hospital registrou, em janeiro, um pico ainda maior de hospitalizações pela doença (155) e sua ocupação alcançou os 102%. O País, por sua vez, já acumula mais de 10 milhões de casos e 246 mil mortos, e vive uma segunda onda, com a propagação de novas cepas e um ritmo de vacinação aquém do desejado.

Presidente do hospital, o cirurgião Sidney Klajner conta que não esperava que o País perderia totalmente o controle da pandemia e se tornaria um dos campeões em casos e óbitos pela doença. Em entrevista exclusiva ao Estadão, ele diz que a falta de valorização da ciência e de atitudes pautadas em evidências científicas foram os principais fatores que levaram o País à situação atual. Ele criticou também a postura do Conselho Federal de Medicina (CFM) em autorizar a prescrição de tratamentos ineficazes, como a hidroxicloroquina, e disse acreditar que ainda viveremos as restrições impostas pela pandemia por um longo período.

"A gente vai ter uma presença endêmica do coronavírus por um tempo extremamente longo. A gente pode até controlar essas infecções endêmicas em determinados países ou regiões onde a gente tem um poder maior de imunização, mas sempre vai ter o risco de ela ser trazida por alguém que vem de fora dessas comunidades. Eu não vejo muito próximo o retorno a uma vida normal", opinou.

Em um ano de pandemia, 3.045 pessoas foram internadas com covid no Einstein, das quais 149 morreram. Considerando só a mortalidade entre os pacientes que passaram pela UTI, o índice foi de 16,6%, muito inferior a índices de mais de 50% registradas em redes hospitalares do Brasil e do exterior.

Para Klajner, a fórmula para reduzir a mortalidade passa por investir em UTIs com boa estrutura, equipamentos adequados e profissionais capacitados. As condições prévias de saúde da população e a facilidade de acesso à assistência também têm impacto, diz ele.

O principal aprendizado destes 12 meses de pandemia , diz o presidente do Einstein, é a necessidade de pautar as estratégias de enfrentamento à doença no conhecimento científico, e não em ideologias. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

Em fevereiro do ano passado, quando o Einstein diagnosticou o primeiro caso, qual era a sua expectativa para duração e evolução da pandemia?

A minha expectativa naquele momento era a de que a gente teria um controle das pessoas que viessem a adquirir o vírus, um controle do isolamento desses pacientes e, por conta disso, a gente atingiria só uma pequena parcela da população. E que tomando os devidos cuidados, como higienizar as mãos, não espirrando nas mãos, evitando locais fechados, a gente teria um controle total da pandemia. Eu costumo ter uma visão mais otimista do que pessimista, então eu lembro que. naquele momento, a gente falava do clima tropical, da diferença do perfil epidemiológico do idoso da Itália, que é diferente do nosso País. Então, a minha visão de otimismo era que a gente teria uma coisa mais controlada.

Na sua opinião, quando as coisas desandaram no País para uma falta de controle completa? Quanto disso pode ser atribuído à falta de conhecimento que tínhamos sobre o vírus no início da pandemia e quanto é responsabilidade da falta de comando dos gestores e autoridades políticas?

Primeiro, a gente está diante de uma infecção por um vírus que ainda carece de muita informação sobre seu comportamento, então a primeira coisa é que a gente aprendeu muito com a doença no ano passado. Aprendeu maneiras de lidar com ela, da necessidade da abordagem multidisciplinar, ainda não aprendemos totalmente quem vai ficar ruim e quem não vai e o porquê. A gente aprendeu que os grupos de risco não são necessariamente só aqueles de faixa etária mais avançada, mas algo que não entendemos é um possível respaldo genético que faz com que algumas pessoas mais jovens também evoluam para insuficiências mais graves. Toda essa falta de conhecimento no início contribuiu, de fato, para a gente ter opiniões divergentes e uma das grandes causas que levaram à falta de um comando pautado por ciência foi a presença de opiniões de pessoas que não detêm conhecimento e passaram a colocar suas posições muito focadas em ideologias. Isso, em um mundo que a gente vive de disseminação muito fácil por mídias sociais, acabou virando verdade e atraindo uma legião de seguidores. A gente via médicos falando que isso não ia passar de uma gripe e que o calor daqui não ia deixar que fosse igual à Europa. A gente viu governantes preocupados com aspectos econômicos, estimulando o não-lockdown. Aqui no Einstein, lá no final de março, a gente já tinha uma projeção de que, caso não fosse feito algo como foi feito na quarentena, a gente teria o estouro da capacidade de leitos na cidade de São Paulo no dia 15 de abril. Então não dá para atribuir um só culpado, mas a falta do conhecimento, talvez a falta da valorização da ciência como o ponto norteador das atitudes e da adoção dessas medidas. E aí, obviamente, entram as nossas lideranças que preferiram acreditar neste ou naquele ponto, fizeram com que o comportamento da população brasileira em como enfrentar a pandemia e os investimentos e planejamento fossem bastante prejudicados desde o início. Toda essa situação colocou o holofote e uma lente maior nas deficiências do sistema de saúde em relação à gestão, ao seu investimento na saúde e na ciência, que é carente no País.

Mas, além dos problemas históricos de gestão e investimentos, teve a postura do governo federal de às vezes ir contra a ciência…

Então, além disso, você deixar de ver o que aconteceu no resto do mundo e colocar soluções salvadoras, se apoiar numa medicação porque aqui é o Brasil, é óbvio que não seria assim. Esse tipo de dúvida, de você atuar na economia independente do resultado da saúde, isso aconteceu no mundo inteiro. A Inglaterra é um país que, no começo, adotou a postura de imunidade de rebanho e, depois de milhares de pessoas indo para as UTIs, eles abandonaram essa estratégia e voltaram para o modelo de controle através de quarentena e lockdown. Então, a gente teria que, primeiro, ter uma liderança. E não necessariamente ia ser o presidente, poderia ser o secretário, o ministro da saúde. No momento que surgiram divergências, o ministro foi trocado. Tivemos duas trocas onde sequer o plano do primeiro ministro foi colocado adiante. Isso abriu espaço para os governos assumirem a autonomia de organizarem o enfrentamento em seus Estados. Então vira uma colcha de retalhos.

O Einstein foi um dos hospitais que lideraram estudos que mostraram que remédios como a hidroxicloroquina são ineficazes contra a covid. Na sua opinião, por que, mesmo com todas as evidências, médicos continuam prescrevendo?

Tudo isso é fruto da importância de como você coloca a ciência como pano de fundo para tudo que a gente faz em saúde. Na medida que esse mundo científico sofre intervenção de ideologias políticas, as mídias sociais se tornaram um palco onde as pessoas podem falar o que querem. Sem falar na própria consequência da última eleição, que praticamente dividiu o País, de pessoas que são partidárias de um tipo de postura, e não é só esquerda ou direita, mas também seguidores fiéis do nosso presidente ou de governantes de Estados, que acabaram, em vez de usar a ciência para se manifestarem, usando esses palcos para autopromoção, para promoção de ideologias. Não existe ciência com ideologia. Mesmo porque isso é um reflexo das brechas que a gente tem da própria formação científica que os médicos têm e de outros profissionais da área de ciências biológicas. Nesse sentido, esse palco deu espaço para as pessoas se manifestarem da forma que elas acham que é, o que mostra que falta essa formação médica para entender que a ciência não é feita com um trabalho com 20 pessoas no hospital na França. A ciência exige que você tenha evidências suficientes para dizer se um medicamento funciona ou não. Ciência e crença não combinam. Só que no nosso código de ética médica, ele coloca que o tratamento fútil é previsto como uma cláusula de má atividade médica. Quando você usa um medicamento que não vai trazer bem ao paciente, pelo contrário, pode causar evento adverso, a responsabilidade é de ambos (médico e paciente), mas o médico influencia muito. Concordo que a autonomia do médico faz parte da relação médico-paciente, da relação de confiança, mas existem também os guidelines, diretrizes e evidências que mostram como deve ser feito.

A gente viu essa questão da autonomia do médico ser usada como justificativa para aqueles que seguem prescrevendo hidroxicloroquina e pelo Conselho Federal de Medicina para manter a resolução que autoriza a prescrição. Mas o conselho já teve posturas contrárias a outras questões que poderiam estar relacionadas com a autonomia, como a telemedicina. Não dá a impressão que são dois pesos e duas medidas?

É isso mesmo que eu acho. Dois pesos e duas medidas, não tenho dúvida. Enquanto o nosso conselho coloca essa questão da autonomia do médico, o conselho da França faz um processo afastando o médico (Didier Raoult) por ter feito os estudos (com hidroxicloroquina) de forma inadequada. Realmente, é passível de crítica, inclusive porque a formação do médico vai seguir os preceitos que o conselho federal coloca, e não é o modo como eu vejo. Aí começam a aparecer casos de hepatite fulminante por ivermectina ou falta de evidências da melhoria dos pacientes.

A gente viu médicos de renome, como Nise Yamaguchi e Anthony Wong, defendendo terapias sem evidências científicas. O que você acha que leva a esse tipo de comportamento?

Aqueles colegas que insistiram no uso de tratamentos que não são pautados por uma boa evidência científica talvez tenham sido influenciados por outros fatores que não o seu paciente como o centro do cuidado pautados pela evidência científica. Ou eles não têm a compreensão, por falta de formação, do que é um artigo científico e quais são as críticas que a gente deve fazer. Te dou um exemplo: recentemente, faz um mês, houve a publicação de um artigo colocando a ivermectina como opção de tratamento precoce e esse artigo foi repercutido pelo próprio ministério, por uma série de médicos, mostrando que agora já teríamos evidências de uma revista renomada. A revista, por ter um nome bacana, foi colocada como se fosse de altíssimo impacto. Essa revista está na posição 984 no impacto dos jornais de medicina dos Estados Unidos. O artigo coloca uma revisão daquilo que já existe. Quem lê aquilo e não está preparado corretamente para interpretar um artigo científico vai ser enganado. O trabalho era praticamente uma impressão pessoal do autor, não havia ciência nesse trabalho. O artigo era uma porcaria, mas, com uma revista com nome bacana e com figurinha de algoritmo, acabou sendo uma chancela. Por que se faz isso? Porque há pessoas que querem ocupar uma posição de destaque que nunca tiveram e aí está a oportunidade. Ou pessoas que não têm a formação para poder compreender o que é um artigo sério. Outra questão é a falta de humildade de voltar atrás. Quando a pandemia começou, ninguém falava em usar máscara. A Organização Mundial da Saúde (OMS) falava que deveria usar máscara quem estivesse tratando de gente com covid. Depois, a gente teve que fazer um mea culpa por não termos usado a máscara antes. Foi um equívoco que o mundo teve que voltar atrás. Esse tipo de postura de soluções salvadoras aconteceu a pandemia inteira. Soluções salvadoras de alguém que tem um único interesse que é o interesse financeiro. Isso é oportunismo. E no meio médico acontece oportunismo da mesma forma.

Vocês tiveram um primeiro pico de internações em abril, com 135 pacientes. E agora, em janeiro, tiveram um novo pico, com 155 hospitalizados. Vocês esperavam que viveriam um pico pior do que o primeiro um ano depois do surgimento do vírus?

Esperar eu não esperava. Na verdade, eu tinha medo por causa do que vimos na Europa. O verão levou todo mundo para as ruas, para a praia, para as festas e eles passaram a experimentar uma segunda onda. Na verdade, eu esperava que não acontecesse, mas existia uma chance considerando o comportamento das pessoas aqui no Brasil como se a gente já tivesse vencido a pandemia. Tivemos aqui no Einstein uma estabilidade de quatro ou cinco meses de 50 pacientes internados no máximo. Depois do feriado de Finados, a gente começou a ver um incremento. A gente já vislumbrava as comemorações de fim de ano, Natal. Eu vi com muita preocupação quando a procura por passagem aérea estava só 15% abaixo da de 2019. Não é possível que as pessoas estejam viajando dessa forma. Ao mesmo tempo, a gente via festas, raves. A contaminação foi brutal e a gente teve que se mexer em meses que geralmente o movimento no hospital cai, que é dezembro e janeiro. A gente chegou a ter no mês de janeiro 102% de ocupação. Por que isso acontece? Teve essa hipótese das novas cepas. Hoje a situação aqui do hospital é de estabilidade. Houve uma diminuição no número de leitos dedicados à covid para 126. A preocupação é manter esses cuidados ainda, evitar aglomeração, até a gente ter uma quantidade de pessoas vacinadas para dizermos que a pandemia está controlada. Vai demorar um tempo grande até a gente ter uma quantidade da população já vacinada e isso que vai fazer ter controle. Se eu fico imunizado e deixo de respeitar essas medidas de precaução, talvez eu não adquira nenhuma forma grave, mas eu posso adquirir uma forma leve e continuar sendo transmissor. Enquanto o controle não é feito e eu estou comemorando a minha imunização, o vírus pode estar mutando até o ponto que a vacina deixa de ser eficaz.

Vimos a tragédia de Manaus, mas países ricos e hospitais melhor estruturados em outros locais do mundo também viveram colapso. Você acha possível que redes mais estruturadas colapsem diante da ameaça das novas variantes? O quanto isso te assusta?

Assusta menos do que assustou no começo da pandemia por conta da expertise em transformar alas não covid em covid e vice-versa. Ele assusta mais no sentido de termos que interromper tratamentos de doenças não covid.

Os dados do Einstein mostram que vocês tiveram uma mortalidade por covid-19 de 16,6% entre os pacientes que foram para a UTI. Outros hospitais têm índices muito maiores, que ultrapassam 50%. Como foi possível ter um baixo índice? Tem a ver com os recursos, mas está associado também ao estado que o paciente chega?

O que importa no tratamento dessa doença é o suporte à vida, o tratamento multidisciplinar e não um tratamento específico. Isso tem a ver com a qualidade de UTI, da disponibilidade dos recursos. Por exemplo, 40% dos pacientes precisaram de diálise. A maior causa de mortalidade em Nova York foi a falta de diálise. Houve UTIs em Nova York com mortalidade de 88% no momento do pico. E obviamente influencia nessa mortalidade as condições da população. A população carente de cuidados médicos terá uma taxa de mortalidade muito maior. Talvez um hospital como o nosso a gente tem uma população que tem um controle melhor das suas doenças. Isso é mais uma demonstração de que não existe tratamento específico. Tem até um estudo americano que mostra que a mortalidade nas UTIs americanas passou a diminuir à medida que deixaram de ficar testando tratamento e passaram a dar importância naquilo que é expertise de uma UTI: tratamento correto da insuficiência respiratória, prevenção de infecção secundária, uso da diálise.

Quando você acha que voltaremos a uma situação próxima da normalidade?

Eu estava lendo um artigo da Nature publicado recentemente e o título é "The coronavirus is here to stay" (O coronavírus está aqui para ficar). Eles entrevistaram uma centena de cientistas do mundo inteiro. E a opinião da maioria é de que a gente vai ter uma presença endêmica do coronavírus por um tempo extremamente longo. A gente pode até controlar essas infecções endêmicas em determinados países ou regiões onde temos um poder maior de imunização, mas sempre vai ter o risco de ela ser trazida por alguém que vem de fora dessas comunidades. Eu não vejo muito próximo o retorno a uma vida normal. Vamos ter que ter precauções quando frequentarmos lugares aglomerados. A gente vai ter que ter preocupação com fronteiras. Eu deposito a esperança do controle na vacinação. Fazendo um comparativo: H1N1 não foi embora. Na época do frio, a gente tem que proteger nossos velhinhos porque senão eles morrem. Então acho que não vai ser nada diferente.

Qual é o maior aprendizado que fica desse um ano de pandemia?

São vários aprendizados, mas talvez o principal é que quando a gente fala de saúde, isso é uma parte do conhecimento que diz respeito à ciência. Nada numa questão de saúde pode ser dirigida, liderada ou idealizada sem a participação de conhecimento científico. Nesse raciocínio, eu imagino que a gestão da saúde obriga que a gente tenha lideranças com conhecimento científico suficiente que vão dirigir o enfrentamento de qualquer situação de saúde. A liderança não pode ser feita por políticos. Ela pode ter políticos, mas ela tem que respeitar o conhecimento científico. Esse é um grande aprendizado que falta para o nosso País. Se você olhar para o resto do mundo, os países que melhor souberam lidar com isso foi quem tinha à frente um time de pessoas com conhecimento científico suficiente para opinar e dirigir as ações, e não uma liderança que tenha como norteador ideologias políticas.

Estadão
Compartilhar
Publicidade
Publicidade