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Eleição em tempo de coronavírus

Regime iraniano arrisca agravar a epidemia de Covid-19

27 fev 2020 - 18h25
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Oficialmente os radicais venceram a eleição parlamentar do Irã de 21 de fevereiro por vasta maioria. Eles conquistaram três quartos dos 290 assentos no Parlamento e reivindicaram um mandato por sua posição de confronto em relação aos Estados Unidos. Os reformadores e moderados, que buscam um melhor entendimento com os EUA e o Ocidente, tiveram um mau desempenho.

O comparecimento às urnas foi o menor numa eleição parlamentar desde a revolução islâmica em 1979, mas isto ocorreu por causa da "propaganda negativa" sobre a ameaça do coronavírus pelos inimigos do Irã, afirmou o líder supremo Aiatolá Ali Khamenei. A eleição, disse ele, mostrava a "genuína atenção do Irã para com a democracia".

O regime é tão impopular que precisou manipular a eleição antecipadamente (mais do que o usual). Mais da metade dos que se candidataram tiveram seu registro rejeitado, incluindo 90 parlamentares que estavam no cargo, a maior parte reformadores e moderados. Em algumas áreas, como Teerã, o bloco moderado e que defende reformas boicotou a eleição por causa da desqualificação maciça dos candidatos.

O baixo comparecimento às urnas se deveu menos ao coronavírus e mais à crença de que essa eleição era uma fraude. Embora Khamenei tenha afirmado que votar era um "dever religioso", somente 42% dos eleitores inscritos compareceram, uma queda em relação aos 62% em 2016. O que foi visto amplamente como uma reprovação do regime.

O governo parece também estar se enganando no tocante ao coronavírus. Até 18 de fevereiro insistia que não havia nenhum caso do vírus no país. Agora as autoridades declararam que pelo menos 61 pessoas foram infectadas e 12 morreram por causa do Covid-19 (o maior número fora da China). Mas podem estar ocultando a real escala da epidemia. Os números oficiais indicam uma taxa de mortalidade inusitadamente alta (na China, onde o vírus se originou, essa taxa é de 2,3%).

Isto significa que o número de infectados pode ser de centenas, talvez milhares. Em 24 de fevereiro, um deputado de Qom, Ahmad Amirabadi Farahani, disse que 50 pessoas morreram só naquela cidade (afirmação rapidamente rejeitada pelo ministério da Saúde). No mesmo dia, o Afeganistão, Bahrein, Kuwait e Iraque, reportaram seus primeiros casos, todos ligados ao Irã.

O Irã vem lutando para conter a epidemia. Fechou escolas e universidade em grande parte do país. Mas especialistas em saúde questionam se o país tem os recursos necessários para enfrentar a crise, diante das sanções americanas impostas em 2018, quando Donald Trump retirou os Estados Unidos do acordo nuclear firmado com o Irã e potências mundiais.

Com a economia em colapso e a moeda cada vez mais desvalorizada, o Irã tem tido dificuldade para importar remédios e outros suprimentos, incluindo os kits usados para o diagnóstico do coronavírus. A Organização Mundial da Saúde (OMS) enviou alguns carregamentos e empresas domésticas lutam para fabricar seus próprios kits. Mas o país está mal equipado para enfrentar a epidemia.

As autoridades iranianas prometeram ser transparentes. Mas suas promessas não inspiram confiança. Em janeiro, o regime derrubou, equivocadamente, um avião de passageiros ucraniano perto de Teerã, matando 176 pessoas a bordo. Então o governo (sem sucesso) tentou encobrir o acidente, o que acarretou enormes manifestações de protesto. Os iranianos agora estão irritados com o fato de o regime levar adiante a eleição quando a epidemia estava crescendo. E se queixam de que, embora as autoridades tenham fechado espaços seculares, como galerias e cinemas, deixaram abertos os santuários lucrativos, especialmente em Qom, que é a área mais atingida pelo vírus. Crescem os apelos para a cidade, que é base dos clérigos no poder em Teerã, ser colocada em quarentena para impedir peregrinos de disseminarem o vírus.

Vários países vizinhos fecharam suas fronteiras para cidadãos iranianos, aumentando o isolamento do país. Os ricos Estados do Golfo têm capacidade para lidar com os casos que já vazaram para seus países. Mais preocupantes são as nações que ainda precisam impor restrições: em 24 de fevereiro, aviões vindos do Irã continuavam aterrissando no Líbano e na Síria. O irã tem uma forte influência nos dois países e nenhum deles tem condições de enfrentar uma epidemia. Atolado na sua própria crise econômica, o Líbano vem tendo dificuldades para financiar suas importações de medicamentos.

A perspectiva de o vírus alcançar a Síria é particularmente funesta. Milhões de pessoas vivem muito próximas em Idlib, a província do norte ainda controlada pelos rebeldes e mesmo nas áreas controladas pelo regime os serviços de saúde foram destruídos por anos de guerra.

Os especialistas em saúde temem que a epidemia se torne uma pandemia. "Estamos particularmente preocupados com o rápido aumento de casos no Irã, Itália e República do Coreia", afirmou o diretor da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus. Os cidadãos da Itália e Coreia pelo menos dependem de governos razoavelmente transparentes e com recursos. Não é o caso dos iranianos. Um clérigo em Qom culpou Trump pela epidemia, dizendo se tratar de um complô americano para destruir a cidade santa. Os burocratas do governo esperam que essa estupidez os protegerá das críticas. Muitos iranianos discordam. Não agir de modo eficiente para responder de modo adequado ao vírus será muito mais prejudicial para a legitimidade do regime do que qualquer coisa que o presidente Trump pretendesse fazer.

*Tradução de Terezinha Martino

Estadão
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