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Da caverna pré-histórica à covid-19: xamãs, influencers e a tradição dos idosos

Quem não está se sentindo minimamente desconfortável ou até mesmo com sintomas ansiosos, depressivos ou hipocondríacos diante da pandemia mente pra si mesmo

27 mar 2020 - 12h11
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Segundo o psicanalista britânico Wilfred Ruprecht Bion (1897-1979), a vida humana seria o processo de aguardar por algum acidente ou percalço incontornável, invariavelmente. Esta sentença, ao mesmo tempo perturbadora e realista, nos fala da falsa ilusão de sermos capazes de controlar os acontecimentos e da via final comum da doença, da incapacidade e da morte.

A vida psíquica é pródiga em nos proteger de realidades dolorosas como essa: negamos, minimizamos, fingimos que só acontece com os outros. Estes mecanismos de defesa têm sua razão de ser pois até certo ponto nos permite lidar com o cenário da vida sem enlouquecer. A realidade em si é potencialmente árida e sem confortos.

A experiência religiosa nasce na Pré-História como um unguento para estas percepções dolorosas e para fortalecer o sentimento comunitário. Nestes tempos, a fome, as doenças e o ataque de animais selvagens ou de tribos rivais traziam a expectativa média de vida para a casa dos trinta e poucos anos. Os xamãs e os anciões auxiliavam na elaboração do luto, mantinham os laços de pertencimento, traziam soluções transmitidas oralmente de geração em geração e alimentavam a esperança do grupo. É provável que a noção de vida eterna tenha surgido ali. Apenas 25% dos Neandertais ultrapassavam os 40 anos de idade. Assustador!

Trazemos dentro de nossos cérebros a herança comportamental destes ancestrais: a reação de "luta ou fuga" corresponde a uma série de alterações psicológicas e orgânicas como o aumento da performance muscular e cardíaca e sentimentos de terror, desamparo e angústia, situação análoga à experiência de um indivíduo que tem uma crise de pânico. Na psiquiatria, uma das premissas é despotencializar o medo extremo e educar o paciente a situá-lo numa perspectiva imaginária ao longo do tratamento. Afinal, o homem moderno com acesso à saúde, atendimento às necessidades básicas, segurança e conforto não precisa fugir de nenhum tigre dentes-de-sabre muito menos lidar com uma horda primitiva enfurecida. Certo?

Vivíamos uma "Belle Époque" em que os avanços da ciência e os confortos da vida moderna permitiriam que o homem vivesse até os 100 anos com facilidade e qualidade e que as agruras vividas pelos antepassados não mais se repetiriam. Tudo estava sob controle. A cobertura vacinal havia erradicado doenças transmissíveis potencialmente letais e a pandemia do vírus H1N1, em 2009, foi manejada com relativa facilidade, apesar de ter ceifado em torno de 150 mil vidas em todo o mundo numa estimativa mais modesta.

Entretanto, a pandemia da covid-19 nos englobou numa experiência traumática coletiva. Os contemporâneos da gripe espanhola nos idos de 1918 e 1919 não estão mais entre nós para contar a história nem dar dicas. Subitamente, a incerteza que nos acompanha sorrateira ao longo dos tempos promove um reset geral: planos, rotinas e a ilusão de segurança postas em cheque. Evidentemente, quem não está se sentindo minimamente desconfortável ou até mesmo com sintomas ansiosos, depressivos ou hipocondríacos diante disso mente pra si mesmo. A pós-verdade, com seu relativismo implacável, alimenta a negação e permite que possamos desvalorizar estratégias de atenuação do impacto da pandemia nos serviços de saúde como o distanciamento social, por exemplo. Estão manipulando nossa percepção de um modo bastante cruel e novamente caímos nas garras da polarização. "Você é a favor da economia ou da saúde?"

A saída para este cenário passa pela atuação dos bons influenciadores, formadores de opinião e lideranças positivas. Ouça e cuide dos seus idosos pois eles têm um legado a ser transmitido. O mundo precisa urgentemente de uma massa crítica de pensadores e do resgate do pensamento reflexivo que vise o bem-comum. O homem não sucumbiu à barbárie graças à capacidade de viver em comunidade presencial ou remota. Estar em distanciamento ou isolamento devido à pandemia não precisa ser sinônimo de solidão. Estávamos usando a tecnologia e as mídias sociais para darmos vazão anônima ou declarada ao ódio, frustração e ressentimento nos últimos tempos. Agora ela é a principal ferramenta de comunicação e troca afetiva.

Reconecte-se com sua rede social mais próxima e busque informações e soluções criativas com os xamãs corretos, sejam eles chefes de Estado, profissionais de saúde mental, professores, intelectuais, nossos idosos, sua esposa ou mesmo o vizinho. A anatomia cerebral é essencialmente a mesma há pelo menos 100 mil anos: as dicas para a saúde mental dos homens da Pré-História e nós em tempos de calamidade são bastante similares. Assim conquistamos a Terra e sobreviveremos a mais um teste. Juntos.

*Rodrigo Martins Leite é Diretor de Relações Institucionais IPq HCFM/USP

Estadão
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