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Casais aprendem a lidar com ansiedade após pandemia adiar sonho de terem filhos

Risco do novo coronavírus fez Anvisa orientar suspensão temporária dos procedimentos de fertilização em laboratório

8 jul 2020 - 11h10
(atualizado às 11h16)
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"A gente tem de aprender a lidar com a poesia da vida, mas a poesia da vida nem sempre é bonita." Essa frase da Juliana representa a forma que ela e outras tantas pessoas encontraram para ver beleza em meio à angústia da espera. Por causa da pandemia do novo coronavírus, mulheres e casais tiveram de adiar o sonho de terem filhos por meio da fertilização em laboratório, uma corrida contra o tempo que pode minar as chances de sucesso.

Por orientação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), procedimentos de reprodução humana foram temporariamente suspensos. As justificativas incluem incertezas e falta de evidências robustas sobre o vírus, além de assumir que mulheres grávidas tornam-se mais vulneráveis devido às mudanças imunológicas. Ficam de fora da regra pessoas com câncer, cujo tratamento quimioterápico compromete a fertilidade, e casos em que o adiamento traria mais danos, como a idade avançada da mulher. Outras situações precisam ser avaliadas individualmente com o médico.

Parte de quem procura a fertilização in vitro (FIV) já tentou ter filhos naturalmente e viu anos se passarem sem que o sonho se realizasse. Mas a espera agora é diferente, é incerta, ainda não tem remédio. Quando o problema é infertilidade, que afeta 8 milhões de brasileiros, ainda é possível identificar uma causa, tratá-la em certas ocasiões e partir para a reprodução assistida. Se o caso foi adiar a gestação, com o congelamento prévio de gametas ou não, bastariam alguns meses para ter os embriões postos dentro do útero. O momento atual, porém, é imprevisível e esperar pode comprometer as chances de gravidez.

Para as mulheres, a natureza não é tão generosa. Todas nascem com uma reserva ovariana de 1 a 2 milhões de óvulos que vai diminuindo com o passar dos anos. Estima-se que cerca de 300 a 500 mil chegam à puberdade e por volta de mil são perdidos a cada ciclo menstrual, independentemente do uso de pílula anticoncepcional.

"Aos 30 anos, a mulher tem 20% de chance ao mês de engravidar. Com 40 anos, a chance é de 5% ao mês. Aos 42 anos, apenas 2% ao mês", explica Paulo Gallo, diretor-médico do Vida - Centro de Fertilidade e professor de ginecologia na Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Além da quantidade de óvulos reduzir, a qualidade dos gametas também piora, principalmente depois dos 35 anos e mais ainda após os 40.

Foi com essa realidade que Juliana Caribé teve de lidar quando, aos 37 anos, se consultou com uma médica da clínica no Rio de Janeiro. A profissional foi categórica: disse que a idade era um dificultador somado à endometriose com a qual a coach e especialista em desenvolvimento humano havia sido diagnosticada aos 25 anos. Aquela época, sim, era a melhor para engravidar ou congelar óvulos, pois é a fase áurea da produção dos gametas. A verdade doeu, mas a mulher determinada tinha um sonho a realizar com o marido, com quem é casada há quase 17 anos.

Após uma bateria de exames feita pelo casal, Juliana iniciou o processo de estimulação ovariana. "O procedimento foi muito doído, a carga hormonal é muito forte, tem toda a questão emocional, é caro, e você quer que tenha resultado", diz ela, que hoje tem 42 anos. O resultado foram cinco embriões de boa qualidade, e os dois melhores foram implantados. "Eu tinha certeza que ia dar certo e não deu."

Mais exames identificaram um problema na tireoide dela, que levou mais dois anos para ser completamente tratado. Ao retornar à clínica para seguir com a fertilização, novas avaliações necessárias acusaram piora da endometriose. Três meses depois de tratar, ela estaria apta a seguir com o sonho, mas isso foi em maio deste ano, e a pandemia da covid-19 foi imperdoável.

"É uma sensação de angústia de que sempre existe algo entre mim e esse sonho de ser mãe. É uma contagem de tempo, o tempo está passando e eu preciso conseguir realizar isso", deseja Juliana. "Mas eu entendo que nesse momento existe uma incerteza muito grande porque é um vírus que não se entende muita coisa. Meu momento agora é esse: aguardando a liberação do coronavírus."

PREPARAÇÃO E ARTE

A convivência com as sobrinhas despertou na Vivian Minitti, de 37 anos, e no marido Milton Brunelli Filho, de 48, a vontade de terem filhos. Casados há quatro anos, eles não pensavam nessa possibilidade antes e ele já tinha feito vasectomia. Sem querer revertê-la, o casal foi direto para a reprodução assistida. Em novembro do ano passado, saiu de Piracicaba, no interior de São Paulo, para fazer o tratamento na Huntington Medicina Reprodutiva, na capital paulista.

"Eu tomava anticoncepcional, então até parar, normalizar e eu menstruar de novo levou três meses. Demorei para fazer os primeiros exames, porque tinha dia certo", conta a corretora de imóveis. A consulta foi em março e depois de alguns exames realizados, veio a notícia de que teriam de esperar. Eles só não imaginaram que seria por tanto tempo.

"Fica aquele sentimento de 'agora que a gente decidiu…'. Não sou tão nova, apesar dos óvulos estarem bons, e eu nunca fui uma pessoa muito ansiosa e agora até estou", conta Vivian. Para amenizar a espera, o casal embarcou em uma preparação. "Desde o começo de abril, a gente mudou completamente a alimentação, cortou café, bebida alcoólica, toma as vitaminas que precisa. Estamos cuidando da gente para colher os melhores gametas possíveis", diz ela. Eles também mergulharam no universo da maternidade e paternidade com cursos e leituras sobre o tema.

E para que o tempo da espera não se transformasse em um tormento, a autônoma Elis Regina Mortola Bandeira, de 38 anos, tem se dedicado à Banda Ritmos, criada pelo marido dela, que é músico, e na qual ela canta - o nome de artista não é à toa. "Isso está me tirando um pouco a angústia dessa espera, foi uma forma para eu me entreter, passar o tempo, não ficar pensando muito", conta. A arte tem sido fundamental nesse momento que ela quase entrou em depressão.

Mãe de uma jovem de 23 anos, fruto de um relacionamento anterior, ela está com o atual marido há seis anos, casada há quatro, e ele não tem filhos. Elis uniu esse fato ao desejo que já tinha de gestar novamente. Algumas tentativas em vão depois, consultou uma médica na cidade vizinha de Rio Grande, no Rio Grande do Sul, que a tratou para endometriose, mas sem um diagnóstico. Inesperadamente, a profissional mudou de município e deixou a mulher com um sonho desamparada.

Persistente, a autônoma buscou outro médico que, por meio de novo exame, constatou que ela tem as tubas uterinas obstruídas. A causa exata não se sabe, mas Elis pode ter tido uma infecção ou sofrido um aborto espontâneo sem saber. Impossibilitada de engravidar naturalmente, foi em busca da FIV pelo SUS quando tinha 34 anos. Ela ficou na lista de espera para realizar o procedimento, mas não ia mais fazê-lo porque o laboratório do hospital estava em reforma.

Três anos depois, entraram em contato com ela para dar início, este ano, aos grupos de orientação para quem faria fertilização in vitro. Os encontros nunca ocorreram porque a pandemia do novo coronavírus impôs a necessidade de distanciamento social. "É complicado, o sentimento é de ansiedade, apreensão, uma mistura de angústia e tristeza", desabafa Elis. Enquanto ela e o marido esperam, eles se cercam dos ritmos da banda na tentativa de alinhar o compasso de corações sedentos pelo nascimento de uma nova canção de vida.

IMPACTO DA PANDEMIA

Com potencial para fazer, a cada ano, mais ciclos de fertilização in vitro, o Brasil tinha se visto apenas uma vez com queda de demanda nos últimos anos. De 2015 para 2016, o número de ciclos de fertilização e de embriões congelados caíram 5% e 1,13%, respectivamente. O motivo: a epidemia do vírus zika.

O último relatório da Anvisa do Sistema Nacional de Produção de Embriões mostra que o País fez 43.098 ciclos de fertilização em 2018. A expectativa para 2020 era de 50 mil, mas Hitomi Nakagawa, ginecologista e presidente da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida (SBRA) já prevê uma queda novamente devido à pandemia do novo coronavírus. "O relatório 2020 pode ter também uma queda. Teve clínicas em Brasília que pararam totalmente, depende da flexibilização governamental. Na capital de São Paulo, teve época que reduziu muito", diz.

Em todos os centros médicos de fertilização, a orientação é que sejam feitos apenas tratamentos de estimulação ovariana ou colhimento de gametas e embriões para congelamento das pessoas que se encaixam nos grupos prioritários, que são pessoas com câncer ou que podem ter prejuízo maior pelo adiamento. A transferência de embriões para o útero ainda deve ser evitada.

O especialista Paulo Gallo diz que o Vida - Centro de Fertilidade faz, em média, de 50 a 60 procedimentos de FIV por mês, com resultado de 600 a 800 no ano. Com a pandemia, de 200 a 250 pacientes tiveram de adiar o tratamento entre março e junho. "Muitas delas estavam com medo de contrair a doença, algumas estão mais angustiadas, mais ansiosas, não queriam adiar, mas é um questão de responsabilidade médica sobre o que nós estamos fazendo", diz o médico.

Já a Huntington Medicina Reprodutiva, em São Paulo, está fazendo 25% dos tratamentos estimados, ou seja, 75% dos procedimentos foram adiados devido à covid-19. "De março para cá, teve queda bastante significativa, não só porque a gente não recomendou mais tratamentos de forma regular, mas também porque as pessoas estão receosas. Existem pessoas que se encaixam nas recomendações da Anvisa para poder fazer o tratamento e ainda assim não querem", relata a ginecologista Cláudia Gomes Padilla, especialista em reprodução humana da clínica.

Uma discussão que surge entre essas mulheres à espera da maternidade é até que ponto a Anvisa pode bloquear o direito delas de realizarem um sonho. "A recomendação é evitar transferência de embriões, não fala que proíbe, então deixa certa liberdade para o médico avaliar um caso excepcional", afirma a médica. "A gente tem de pensar no coletivo agora, na questão do distanciamento social."

Também em São Paulo, a Mater Prime finalizou tratamentos de casos oncológicos em março e ficou mais de um mês sem realizar qualquer procedimento. Com a retomada gradual dos tratamentos em maio, os critérios avaliam individualmente o perfil dos casais e mulheres. "A grande questão é que tem muitas incertezas em relação à covid-19, com relação à gravidez, e até o momento não tem uma evidência forte que diga que o vírus traga ou não prejuízo para o bebê", diz Matheus Roque, especialista em reprodução humana da clínica.

Estadão
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