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Brasil vai ter vacina em 2021?

Nas próximas semanas vamos saber se a estratégia escolhida pelo Estado de São Paulo e pelo governo federal serão capazes de garantir que todos os brasileiros serão vacinados contra o SARS-CoV-2 no ano que vem

20 nov 2020 - 14h10
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Nas próximas semanas vamos saber se a estratégia escolhida pelo governo do Estado de São Paulo e pelo Governo Federal serão capazes de garantir que todos os brasileiros serão vacinados contra o SARS-CoV-2 em 2021. O Brasil fez suas escolhas em meados de 2020 e as primeiras consequências estão ficando aparentes agora que o mundo já possui duas vacinas com eficácia da ordem de 95%.

A grande maioria dos países adotou uma estratégia muito diferente da brasileira. Cada país fez acordos com um número grande de empresas que estavam desenvolvendo vacinas no início da pandemia. Esses acordos envolviam a compra antecipada de número grande de doses da vacina caso seu desenvolvimento tivesse sucesso. Em muitos casos, uma parte das doses foi paga antes dos resultados da fase 3, independentemente dos resultados finais. Ou seja, pagaram para ajudar no desenvolvimento, e dividiram parte dos riscos com o desenvolvedor. Mas o que caracteriza a estratégia desses países é que eles apostaram em diversos fornecedores, de 3 a 5, e compraram adiantado uma quantidade de doses maior do que seria necessário para vacinar toda sua população, sabendo que provavelmente algumas das empresas não teriam sucesso ou suas vacinas teriam uma baixa eficácia.

Dessa maneira, se somente uma ou duas das apostas funcionasse, mesmo assim teriam vacinas suficientes para imunizar rapidamente toda a população. Uma segunda característica desses acordos é que não envolviam o governo na construção de fábricas ou na execução dos testes da fase 3. Ou seja, eles colocaram os ovos em diversas cestas e deixaram para as empresas decidir como testar e como produzir suas vacinas. Tanto os países europeus quanto os asiáticos e da América do Norte têm tradição de comprar vacinas no mercado internacional, se preocupando só com o preço e com a eficácia do produto.

No Brasil a estratégia adotada foi radicalmente diferente. Ela foi ditada pela tradição nacionalista que rege a Fiocruz (um órgão do governo federal que produz vacinas) e o Butantã (órgão do governo paulista que também produz vacinas). Essas duas instituições são guiadas pela ideia de que vacinas são um insumo de segurança nacional, estratégicas para a segurança e a independência nacional, que devem ser produzidas no Brasil e nunca importadas. Por trás desse conceito, está uma visão nacionalista de independência tecnológica, a mesma que dominou a indústria da informática na época da ditadura (lembram quando não podíamos importar computadores e vivíamos sob a maldita Lei da Informática?).

Nessa visão, o importante é que o Brasil produza localmente suas vacinas em fábricas próprias, dominando totalmente a tecnologia. Essa visão estranhamente compartilhada pelos militares e por militantes de esquerda do velho partido comunista, tende a privilegiar acordos em que a transferência de tecnologia seja mandatória, a produção seja local, e a tecnologia seja dominada pela Fiocruz e Butantã. E foi essa visão que foi recomendada e adotada tanto a nível federal quanto estadual (Jair Bolsonaro/Fiocruz e João Doria/Butantã).

O resultado é que o Brasil possui hoje só dois acordos relacionados ao suprimento de vacinas. Um com uma pequena empresa chinesa, a Sinovac, e outro com a Universidade de Oxford/Astra Zeneca. Em ambos os acordos, nossos governos pagaram por doses da vacina caso seja aprovada, mas exigiram (ou aceitaram) a responsabilidade financiar e executar os estudos de fase 3 no Brasil. Além disso se comprometeram a construir as fábricas das vacinas necessárias para garantir a vacinação dos brasileiros. Para executar localmente os estudos de fase 3 o Brasil já gastou uma pequena fortuna e para construir as fábricas se comprometeu com outra pequena fortuna. Ou seja, o Brasil só apostou em vacinas em que os produtores aceitaram esse tipo de acordo (veja meu artigo de 12 de junho: Um negócio da China).

Agora chegou a hora de descobrirmos se essa estratégia foi correta. Ela ainda pode dar certo, as vacinas de Oxford e da Sinovac talvez consigam terminar rapidamente os estudos de fase 3, talvez esses estudos mostrem que ao menos uma dessas vacinas tenha eficácia maior que 90%. Talvez o Brasil consiga construir rapidamente suas fábricas e usar as vacinas já pagas e produzidas no exterior para iniciar a vacinação enquanto as fábricas não ficam prontas (foi comemorada nessa quinta, 19, a chegada de 120 mil doses que não são suficientes para vacinar sequer um grande estádio de futebol). Só o tempo dirá.

Por outro lado, já ficou claro que o Brasil não terá acesso imediato às duas vacinas que são extremamente eficazes (Pfizer e Moderna), em grande quantidade, no curto prazo. A Pfizer gentilmente iniciou conversas com o governo brasileiro, mas o fato é que grande parte de sua produção em 2020 e 2021 já esta vendida, e se ficarmos com algo, será uma migalha, um gesto de consideração. As doses que serão produzidas pela Moderna também já estão vendidas.

Ao contrário dos outros países, temos só uma cesta com dois ovos e para eles se transformarem em doses de vacina vamos depender de um desses imunizantes ser tão eficaz quanto os dois que já terminaram a fase 3. Depois, teremos que depender da construção de duas fábricas financiadas em parte pelo governo, em parte por doações privadas, no ritmo que caracteriza o setor público brasileiro.

Há ainda a possibilidade de as vacinas em que apostamos terem eficácias menores que 90%. Aí o problema será ainda mais complexo. Vale a pena produzir e vacinar a população com uma vacina de segunda categoria?

O fato é que também no campo das vacinas o viés ideológico e a incompetência governamental talvez nos custem caro. Parece que continuamos no nosso caminho, seguindo a estratégia escolhida pelo Brasil: a Imunidade de Rebanho por Incompetência (IRPI). Chegaremos lá rapidamente se não tivermos vacinas suficientes em 2021 e esse aumento de casos que vem sendo observado realmente se caracterizar como uma segunda onda.

* BIÓLOGO, PHD EM BIOLOGIA CELULAR E MOLECULAR PELA CORNELL UNIVERSITY E AUTOR DE A CHEGADA DO NOVO CORONAVÍRUS NO BRASIL; FOLHA DE LÓTUS, ESCORREGADOR DE MOSQUITO; E A LONGA MARCHA DOS GRILOS CANIBAIS

Estadão
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