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Ama teu inimigo

Quarentena provocou distanciamento de situações cotidianas e gera reações adversas

29 jun 2020 - 05h11
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Antes da quarentena, minha filha andava às voltas com uma nova amiga na escola a quem estava chamando repetidamente de chata. Segundo ela, a garota, de seis anos, provocava todo mundo, mentia, criava caso. Infelizmente, com a suspensão da aula não tivemos tempo de observar o resultado de um experimento que propus a ela. Apostei que se ela começasse a tratar bem a garota, se aproximasse dela, se brincassem juntas no intervalo, ela deixaria de ser chata.

A situação é óbvia para quem está de fora: nova na escola, a garota se sentiu excluída, experimentando emoções negativas. Reagindo de acordo afastou as outras crianças, sentindo-se mais rejeitada, tornando-se mais hostil. Ela não é chata. Está chata.

Contei para minha filha que fiz essa experiência já adulto: uma coisa muito parecida aconteceu num grupo de amigos. Uma das pessoas começou a ficar irritada, foi se isolando, arrumando problemas, até um ponto que parecia insustentável. Propus a outros colegas que começássemos a tratá-la bem independentemente da forma como fôssemos tratados. Mesmo céticos, muitos aderiram e, em questão de dias, o clima entre as pessoas foi transformado.

Não é mágica. Os afetos são contagiosos. Bom humor gera bom humor. Tristeza gera tristeza. E com a hostilidade é ainda pior: não é apenas contagiosa, é também uma provocação para reagirmos de forma também hostil numa tentativa de defesa, o que só aumenta a agressividade do outro lado. 

Decidir ir contra nossos instintos e agir de forma oposta, pagando o mal com o bem, tem o poder de quebrar essa cadeia. É uma forma de libertação: os envolvidos tornam-se livres para não agredir, pois 99% da humanidade não irá tratar mal quem as trata bem (com aquele 1% de psicopatas a estratégia pode não dar certo. Mas como não sabemos em princípio quem são eles, normalmente vale a tentativa. Meu colega certamente não era (nem a amiguinha de minha filha).

Em entrevista ao Estadão por ocasião de seus 90 anos, a cantora Elza Soares fez uma observação interessante sobre o momento. "O Brasil sempre foi um país do amor, e as pessoas estão se esquecendo disso. De onde pode ter saído tanto ódio?". E completou: "Quando soubermos que não somos nada, e que somos todos iguais, seremos mais leves, teremos mais amor e voltaremos a ter esperança". É uma boa pergunta. E uma boa solução. 

De onde saiu tanto ódio? Não sei se é possível localizar precisamente a origem. Nem se é útil: depois que um deu um tapa na cara do outro e o outro passou rasteira no um, descobrir quem começou não ajuda a desfazer a lógica retributiva que toma conta das pessoas. Só quando compreendermos plenamente que de olho por olho todos acabarão cegos, como diz o ditado, fica claro que o amor de fato é a única saída.

É difícil falar em amor atualmente. Passeatas contra e pró-governo colocam frente à frente pessoas tão antagônicas que o ódio parece inevitável. Ameaças de morte pululam nas redes sociais entre opositores, como se a aniquilação do outro lado fosse a única solução para o dissenso. São inimigos declarados, entrincheirados. Seria utópico esperar mais amor? Pode ser, mas não impossível. Muito menos irracional. Ao contrário, amar seu inimigo é provavelmente o cálculo mais racional que podemos fazer. Obviamente não se trata de ter apreço ou simpatia por pessoas que defendem uma visão de mundo em tudo oposta à nossa. Trata-se só de se recusar a ir para o lado de lá. 

O lado do ódio, da morte, do desprezo pelo outro é o lado que diminui a vida, que apequena a humanidade, que nos reduz a nossa animalidade instintiva. Se cedemos ao ódio a nossos inimigos, eles vencem; roubam de nós o que temos de mais precioso: a possibilidade de transcender nossa natureza em direção a um patamar mais sublime, aquele que leva o mundo para estágios mais evoluídos da consciência humana. Desejar sua morte é ir contra o movimento que nos fez abandonar sacrifícios humanos, escravidão, discriminação legalizada.

Pode parecer difícil. Mas pense na alternativa: até aqui, qual bem nos fez odiar nossos inimigos? 

*Daniel Martins de Barros é psiquiatra

Estadão
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