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Alimentos com excesso de açúcar devem ter impostos altos, defende relatora da ONU

Em entrevista ao 'Estado', Hilal Elver compara com a tributação do cigarro e alerta que as dietas da população mundial estão cada vez mais pobres apesar da superabundância

18 out 2019 - 11h11
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NOVA YORK - Mesmo com a existência de múltiplas opções de alimentos, a baixa qualidade e o excesso de açúcares, gorduras saturadas e sal na comida são responsáveis por uma "epidemia" de pessoas má alimentadas ao redor do planeta. Estimativas da Organização das Nações Unidas (ONU) indicam que haja 2 bilhões de indivíduos com obesidade ou sobrepeso, ao mesmo tempo em que 820 milhões estão em situação de insegurança alimentar.

Relatório divulgado nesta semana pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco, na sigla em inglês) evidencia uma tendência global de crescimento de problemas nutricionais, mais graves em quem está no início da vida. Uma em cada três crianças com menos de 5 anos enfrenta subnutrição ou sobrepeso, em número que chega a 200 milhões.

Em entrevista ao Estado, a relatora especial da ONU sobre o direito à alimentação, a turca Hilal Elver, defende o aumento dos impostos sobre as refeições com excesso de açúcar, para que as pessoas "pensem duas vezes" antes de comprar o produto, e compara com a tributação do tabaco.

"A maneira mais eficaz pela qual os governos em todo o mundo restringiram o uso de cigarros é tributando-os em níveis muito altos", afirmou. "Acredito que seja totalmente apropriado fazer o mesmo."

Hilal destaca ainda a importância da educação na promoção de dietas de qualidade e das políticas governamentais para incentivar o consumo de alimentos mais saudáveis. Na prática, a função da relatora da ONU é analisar, de maneira independente, questões relacionadas a alimentos e direitos humanos em todo o mundo.

Ela diz, por exemplo, que a combinação de más dietas, a falta de tempo para cozinhar e táticas de marketing "agressivas" da indústria alimentícia contribuem para o aumento do sobrepeso. E entende que os governos ao redor do mundo não estão atuando com a seriedade que deveriam.

"Com as mudanças climáticas e a obesidade causando sérias ameaças à saúde humana em todo o mundo, seria de esperar que os governos estivessem se movendo com um maior senso de urgência. Infelizmente, não estão", afirmou.

Leia abaixo a entrevista completa:

A senhora acredita que a segurança alimentar esteja na agenda global e na preocupação dos governos de maneira satisfatória?

Se a questão da segurança alimentar estivesse suficientemente na agenda global e estivesse progredindo satisfatoriamente, eu não precisaria fazer esse trabalho. Ainda há um longo caminho a percorrer e, infelizmente, não tenho muita esperança no prognóstico da mudança.

Com as mudanças climáticas e a obesidade causando sérias ameaças à saúde humana em todo o mundo, seria de esperar que os governos estivessem se movendo com um maior senso de urgência. Infelizmente, não estão. Mas fico encorajada pelo relatório mais recente do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), que enfatiza a conexão entre as mudanças climáticas, os alimentos e a agricultura.

Uma pesquisa realizada pelo Ministério da Saúde do Brasil constatou que quase 20% da população brasileira é obesa - o maior porcentual observado. Em 13 anos, o número aumentou 67,8%. Por que a obesidade está crescendo em muitos países?

É resultado de uma combinação de fatores, mas as más dietas combinadas com estilos de vida cada vez mais sedentários são os culpados em geral. No entanto, quando nos aprofundamos um pouco, podemos encontrar várias causas subjacentes. As dietas estão cada vez mais pobres como resultado de uma superabundância e disponibilidade excessiva de alimentos de baixa qualidade que contêm excesso de açúcar, sal e gordura saturada e falta de acesso a alimentos nutritivos e de qualidade.

Isso ocorre por várias razões: renda insuficiente para comprar alimentos saudáveis e nutritivos, falta geral de tempo disponível para cozinhar alimentos nutritivos e existência de desertos alimentares (locais que não têm acesso imediato a supermercados ou mercados de alimentos), táticas de marketing agressivas das empresas internacionais de junk food são algumas das principais causas.

A obesidade é frequentemente exacerbada entre as comunidades pobres e marginalizadas. Em muitos casos, é mais barato e facilmente disponível comer alimentos de baixa qualidade do que comer alimentos saudáveis. Isso, por sua vez, aponta para problemas estruturais maiores com a maneira como nossos sistemas alimentares operam e o tipo de incentivo que é oferecido para produzir e vender alimentos de baixa qualidade, em vez de alimentos saudáveis.

Qual é a sua opinião sobre leis e controles como os desenvolvidos no Chile, onde há um rótulo indicando que os alimentos têm muito sal ou açúcar, ou no caso do México, que tributa bebidas com muito açúcar? Devemos desenvolver mais regulamentações sobre os produtos que consumimos e fazer com que a indústria forneça mais informações sobre eles?

Os esforços para reduzir o consumo de açúcar fazem muito sentido: o açúcar é um dos contribuintes mais significativos para a crise global da obesidade e uma das maiores barreiras para melhorar a saúde global. Não há benefícios positivos para a saúde decorrentes da ingestão de açúcar e só agora estamos começando a entender o custo impressionante para a saúde humana associado ao consumo de açúcar porque, durante décadas, a indústria de alimentos gastou milhões de dólares para suprimir isso.

A política tributária é uma das alavancas mais eficazes que um governo tem à sua disposição para modificar o comportamento de seus cidadãos. A maneira mais eficaz pela qual os governos em todo o mundo restringiram o uso de cigarros é tributando-os em níveis muito altos. Acredito que seja totalmente apropriado fazer o mesmo com bebidas açucaradas, e minha única ressalva é que o imposto possa ser muito baixo.

Para realmente modificar o comportamento, o imposto deve ser significativo o suficiente para fazer as pessoas pensarem duas vezes sobre a compra que estão prestes a fazer e escolher outra opção. Dito isto, é preciso dizer que taxar o público em geral sempre cria discriminação - os pobres pagam mais e os ricos nem sempre percebem isso. Também é politicamente difícil para os governos implementar um novo imposto, dado o impacto político de fazê-lo no momento das eleições.

E em relação aos rótulos?

A rotulagem é outra importante intervenção política destinada a fornecer informações aos consumidores. Podemos ver que a indústria impediu o progresso nessa área. Na Colômbia, as tentativas de exigir a identificação da frente da embalagem foram frustradas por esforços coordenados de lobby por parte da indústria, que viam essa intervenção como um obstáculo à lucratividade.

Cada ferramenta política tem seus prós e contras. Portanto, devem ser ajustadas às condições de cada país. Além desses incentivos e impostos do mercado, a educação deve fazer parte da intervenção do governo, especialmente porque as crianças em idade escolar estão sujeitas a campanhas publicitárias de alimentos não saudáveis. Isso também deve ser tratado pelos governos.

Em entrevista ao Estado, o então líder da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura), José Graziano, disse que a área em que havia menos avanços era a criação de mecanismos mais eficientes de governança alimentar, como leis, regulamentos e instituições. Como isso pode ser melhorado?

O papel ativo e protetor dos governos na área de alimentação e nutrição é extremamente importante. Sem leis e regulamentos obrigatórios, não haverá melhorias. Iniciativas voluntárias não funcionam, e podemos ver evidências disso em todos os lugares.

As forças do mercado sempre interferem nos governos para impedir medidas importantes que os governos tentam adotar. No Brasil, o direito à alimentação está incluído em sua Constituição como um direito humano fundamental, que coloca o governo como portador de deveres que deve oferecer proteção aos seus titulares de direitos, os cidadãos.

Como comer de maneira mais saudável e promover dietas ambientalmente sustentáveis sem prejudicar o desenvolvimento da indústria de alimentos? Isso pode ser feito em parcerias entre indústria, governo e instituições?

A maneira mais simples de promover dietas ambientalmente sustentáveis é escolher opções de alimentos com pequena pegada de carbono. Isso significaria comer principalmente alimentos produzidos localmente, com base em plantas. Em termos de como fazer isso sem prejudicar a indústria de alimentos, acho que precisamos olhar para essa questão de maneira diferente. Ser capaz de comer alimentos nutritivos é um direito humano fundamental. Lucrar não é.

Portanto, não estou muito preocupada com o impacto na indústria de alimentos, porque acredito que a indústria de alimentos devesse estar operando de maneira muito diferente da que opera hoje.

No entanto, é improvável que a mudança necessária para levar a humanidade a dietas ambientalmente sustentáveis seja iniciada pela própria indústria. Não tenho certeza se é uma parceria entre indústria, governo e instituições, mas é a ideia de que o governo precisa levar muito a sério o negócio de regular a indústria de alimentos. O alimento é uma necessidade da vida e é fundamental para a saúde humana.

Alimentos de baixa qualidade levam a maus resultados para a saúde e a indústria alimentícia ganha dinheiro com as mãos nas costas das pessoas que estão adoecendo no processo. As taxas de doenças crônicas não transmissíveis nunca foram tão altas e grande parte disso se deve à indústria de alimentos. A indústria demonstrou que não se pode confiar em fazer a coisa certa quando se trata de produzir alimentos nutritivos e de qualidade que as pessoas precisam. E eles certamente não fizeram nada de maneira ambientalmente sustentável.

Além disso, a indústria de alimentos continua produzindo produtos que sabemos ser prejudiciais à saúde humana e ao meio ambiente. Assim como a crise dos opioides que assolam os Estados Unidos, onde os fabricantes de drogas foram recentemente responsabilizados por seu papel na criação de produtos nocivos que destruíram vidas e comunidades, os governos devem pensar nos paralelos na área de alimentos.

Em ambos os casos, a autorregulação não funciona. Os Estados devem regular com firmeza e investir em sistemas alimentares locais sustentáveis que produzam alimentos necessários para a saúde e nutrição humana, e não em produtos alimentares que ofereçam pouco em termos de nutrição e tenham impactos significativos no meio ambiente.

Estadão
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