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Aos 92, universitário se adapta à tecnologia para ver aulas

Carlos entrou na faculdade aos 90 anos e incentiva alunos jovens a atravessarem a pandemia com sabedoria; conheça a história de idosos que se reinventaram com o ensino superior e hoje driblam as dificuldades do isolamento

22 mai 2020 - 15h40
(atualizado às 16h04)
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Carlos Augusto Manço passou alguns dias da quarentena estudando na Serra da Canastra, em Minas Gerais
Carlos Augusto Manço passou alguns dias da quarentena estudando na Serra da Canastra, em Minas Gerais
Foto: Isabella Bucci

Carlos Augusto Manço nasceu três décadas antes da televisão chegar ao Brasil e hoje, com a pandemia, precisa se adaptar às aulas online da faculdade. Aos 92 anos e em isolamento por causa do novo coronavírus, o vovô está no terceiro ano de Arquitetura e sente falta do contato presencial com os colegas do curso, mas não se abate com os desafios da quarentena para estudar.

Mesmo com dificuldades para digitar, problemas de audição e sem costume de mexer no computador, ele se reinventa com a tecnologia para conquistar o sonho de se tornar arquiteto. "Tem horas que dá vontade de parar pelo volume de estudos, mas a vontade de continuar é maior", diz. "Para entrar no sistema [de videoconferência], minha neta está me ensinando um pouco a cada dia."

Morador de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, o idoso não conseguiu fazer o ensino superior na juventude por questões financeiras. "Só tinha curso profissionalizante na cidade e eu não tinha condição de estudar fora. Então, resolvi trabalhar e fazer o que estava ao meu alcance [técnico em edificações]", explica. Por 50 anos, trabalhou com desenho urbano, ajudou a projetar as obras do hospital universitário da USP, no campus de Ribeirão, e hoje se dedica a trocar conhecimentos com seus colegas de classe, inclusive nas aulas pelo computador.

Assim como era presencialmente, Carlos está sendo um aluno exemplar. Não falta um único dia e mantém uma rotina regrada: acorda cedo para a aula, estuda no período da tarde e, mesmo acompanhando as notícias sobre a covid-19, busca tranquilizar os estudantes mais jovens com a sabedoria de quem já viu outras crises de saúde pública ao longo de quase um século de vida.

"Isso vai passar. Temos que manter a rotina em casa e deixar a mente funcionando. Quanto mais estudamos, mais temos conhecimento. Quando as aulas [presenciais] voltarem, poderemos compartilhar experiências diferentes", afirma. A positividade se soma à esperança com o futuro: quando tudo isso acabar, ele pretende estagiar em obras de hospitais — desejo que nutre consigo há muitos anos.

Carlos acredita que a falta de convivência física com os colegas e professores é um problema. Mas, enquanto as coisas não voltam ao normal, sua neta, Isabella Bucci, ajuda o avô a preencher as lacunas do ensino a distância. "De tarde fazemos as lições juntos para ele reforçar o exercício proposto. Ele lê os textos e faz resumos. Leio também para poder trocar ideias sobre o tema como se estivéssemos na faculdade discutindo o assunto", conta.

'Sou uma jovem de 90 anos'

É assim que Neuza Guerreiro de Carvalho se define. Mantendo com firmeza suas atividades acadêmicas na pandemia, ela se formou em História Natural (atual Ciências Biológicas) na Universidade de São Paulo (USP), em 1951, e decidiu voltar 54 anos depois, em 2005, por meio do projeto para terceira idade USP 60+, no qual fez mais de 50 cursos semestrais até 2015.

De lá para cá, ela coordena um curso de Memória Autobiográfica para idosos, hoje ministrado online devido ao novo coronavírus. "Fazemos as aulas no Zoom e Google Meet. Está sendo um sucesso, com nenhuma falta dos participantes", diz ela. "Domino bem o que preciso [de tecnologia]. Tudo é questão de interesse, necessidade, curiosidade em estar atualizada. Com o uso dessa modernidade, aumentei meu vocabulário em pelo menos 100 palavras."

O médico e coordenador do USP 60+, Egídio Dorea, explica que uma virtude comum dos 3,5 mil idosos que participam do programa é a resiliência. Nas aulas presenciais da Universidade de São Paulo, é comum entre as pessoas da terceira idade sentar na frente, participar mais das aulas que os jovens e entregar atividades no prazo por livre e espontânea vontade. Além disso, a maioria interage mais com os professores, de uma forma alegre e informal.

"Mesmo na pandemia, eles continuam presentes, dando sugestões e comentando todas as atividades que publicamos. Essa postura nos estimula a estarmos sempre procurando maneiras de ajudá-los a manter a qualidade de vida nesta quarentena", afirma Dorea.

A dedicação não vem à toa: não existe a palavra 'parar' no vocabulário desses idosos. Mesmo tendo que se reinventar duas vezes na velhice — primeiro voltando à faculdade e depois se adaptando ao estudo a distância —, a vontade de se sentirem produtivos fala mais alto. "Só vou parar quando morrer. Mas acho que nem aí eu paro, porque doarei meu corpo para estudos [científicos]. Vou continuar sendo útil", diz Neuza.

'Quero inspirar os jovens a serem bons velhinhos no futuro'

Rosângela Marcondes, de 64 anos, segue no mesmo pique. Contadora de formação e hoje aposentada, ela participa dos programas Universidade Aberta à Pessoa Idosa (Uati), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e do Criativa Idade, da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).

"É tudo muito animador. Me sinto vista, reconhecida e isso é importante, principalmente nesta pandemia, porque não me sinto abandonada ou desligada de tudo que construí", afirma. Embora prefira as aulas presenciais, ela conta que a rotina de isolamento está sendo boa para colocá-la em contato com ferramentas que não conhecia antes, como as lives.

Desde o começo da quarentena, ela vem fazendo transmissões ao vivo em sua página do Instagram (@it_avo) para crianças, a fim de mostrar para elas a realidade dos idosos. "Quero passar empatia para os pequenos. Tenho a missão de inspirar os mais jovens a serem bons velhinhos no futuro", diz.

O coordenador do programa Criativa Idade da ESPM, Marcus Nakagawa, imaginava que muitos iam se desmotivar com as aulas a distância devido à idade. No entanto, o engajamento entre eles aumentou e o contato pelas redes sociais vem sendo constante. "Estão super ativos, mesmo com alguns problemas de falta de entendimento tecnológico. Passamos algumas atividades pelo celular e eles mandam os retornos. Já fizemos até mindfulness por videoconferência", conta.

O Criativa Idade fornece, gratuitamente, aulas de teatro, gestão, marketing, softwares de edição de foto, história da arte e tecnologia de aplicativos. No Uati da Unifesp, também de graça, são oferecidas informações básicas sobre saúde e conhecimentos gerais, como Direito, Psicologia, História da Arte, Artes Plásticas, oficina de memória, Língua Portuguesa e Literatura.

Vale ressaltar, porém, que nenhum programa de universidade aberta a idosos é uma graduação formal. Nos projetos, a pessoa pode cursar disciplinas dos cursos de graduação, mas isso não lhe dará um diploma para exercer uma nova profissão.

'A aposentadoria deixa o cara maluco'

O administrador Guilherme Lobarinhas, de 72 anos, foi um dos primeiros estagiários seniores no Brasil, em 2015, em uma agência de publicidade que não exigia nada mais que "experiência de vida" para a vaga. Embora não fosse sua área, ele conta que foi um bom momento para aprender a dominar a tecnologia.

"Existe uma parcela muito grande de pessoas que tiveram uma vida profissional dinâmica, então a aposentadoria deixa o cara maluco. Levar o cachorro para passear, caminhar, participar disso, daquilo, distrai, mas não preenche a ansiedade de se sentir útil novamente. Na quarentena, confinadas dentro de casa, essa ansiedade aumenta ainda mais", afirma.

O especialista em RH e CEO da Heach Recursos Humanos, Elcio Teixeira, explica que em momentos de dificuldade, como o da pandemia, um estagiário sênior se torna uma figura importante para a regulagem emocional da equipe. "As pessoas tendem a usar a experiência de vida dele como um fator tranquilizante na crise."

Este é o caso de Fábia Pinheiro, de 56 anos. Ela resolveu largar o antigo trabalho de contadora para realizar o sonho de entrar na área do Direito. Hoje no último ano do curso, ela estagia em um grande escritório de advocacia do Recife, capital de Pernambuco, que adotou um programa de longevidade para contratar universitários com mais de 55 anos.

"É prazeroso fazer o que ama. A vida fica mais leve. A gente tem que buscar nas situações difíceis, como na de agora, coisas que nos agreguem. Continuo estimulada a estudar e aprender cada vez mais nesta quarentena", afirma. Sua supervisora, a advogada Doris Castelo Branco, de 44 anos, avalia que a experiência de vida e a maturidade de Fábia está trazendo serenidade aos mais jovens nestes tempos difíceis.

*Estagiário sob supervisão de Charlise Morais

Estadão
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