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Por que fazer um 'The Voice' exclusivo para pessoas com mais de 60 anos?

Especialistas consideram que envelhecimento da voz e tentativa de trazer mais representação de idosos estão relacionados à nova versão do reality

14 set 2020 - 17h22
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Jimi Bellmartin foi o campeão da primeira edição do 'The Voice Senior', de 2018, quando tinha 69 anos de idade
Jimi Bellmartin foi o campeão da primeira edição do 'The Voice Senior', de 2018, quando tinha 69 anos de idade
Foto: YouTube / Reprodução / RTL / Estadão

A Rede Globo revelou, em agosto de 2020, que irá produzir uma nova versão do famoso reality show The Voice, que terá como grande diferencial a necessidade de que todos os participantes inscritos tenham mais de 60 anos. Mas existem motivos que poderiam justificar essa nova edição da franquia?

Essa nova versão do The Voice surgiu em 2018 nos Países Baixos, terra natal do reality, e foi criada por John de Mol, responsável pelo The Voice, para competidores entre 18 e 55 anos, e The Voice Kids, para cantores com menos de 18 anos.

O formato da edição para idosos, nomeada The Voice Senior, segue o mesmo das outras versões: os jurados, três no Kids e quatro no adulto e Senior, ficam virados de costas para os cantores e, se gostarem das apresentações, viram a cadeira para tentar incluir o candidato em seu time. Depois dessa primeira fase ocorrem as fases de duelos, as apresentações ao vivo com votação do público e a final, que consagra o campeão.

Mesmo sendo recente, o conceito do The Voice Senior se espalhou pela Europa, ganhando versões na Alemanha, Rússia, Espanha, Bélgica e outros países. Fora do continente, a Tailândia, a Arábia Saudita e o México também lançaram suas versões do reality, uma lista que contará com o Brasil a partir de 2021.

Durante o festival Cannes Lions de 2017, o chefe da Talpa Global, responsável pela marca The Voice até 2020, disse que a versão foi idealizada devido ao sucesso das versões original e para crianças. Procurada pelo Estadão, a Rede Globo disse que não iria falar sobre o reality, que ainda está em fase de planejamento.

O envelhecimento da voz

Mas ensando em questões técnicas, também faz sentido ter uma edição exclusiva para os idosos competirem. O passar dos anos leva a uma série de mudanças no corpo, o que não é diferente com a voz. As alterações vocais causadas pelo envelhecimento são chamadas cientificamente de presbifonia.

Evelyn Alves Spazzapan, fonoaudióloga que pesquisou a presbifonia em seu mestrado na Unesp, explica que as mudanças são hormonais e também ocorrem na camada que reveste as pregas, ou cordas, vocais. Os sons são emitidos pela vibração dessas pregas conforme o ar passa por elas, e portanto variações nelas influenciam nos sons gerados.

"Há um arqueamento da prega vocal que forma uma fenda, que permite passagem maior de ar, o que modifica a qualidade vocal", explica Evelyn. Pesquisas mostram que isso leva à alteração da voz em mulheres, que no geral fica mais grave, mas ainda não há consenso sobre o efeito em homens. No geral, porém, observa-se que a voz fica mais rouca, e é eliminado mais ar enquanto o som é emitido.

Esse processo de envelhecimento ocorre durante toda a idade adulta, mas se intensifica conforme a pessoa chega na chamada terceira idade, geralmente a partir dos 60 anos. "Essas mudanças não ocorrem da mesma forma para todos e nem todos os órgãos e funções do nosso corpo envelhecem da mesma forma e no mesmo tempo", observa a fonoaudióloga Deborah Gampel, que estudou os efeitos dessas alterações em seu mestrado.

A intensidade da alteração na voz de um idoso depende, assim, de diversos fatores, passando tanto pela genética quanto pelos hábitos que essa pessoa teve ao longo da vida. Ingestão de álcool, fumo, falta de hidratação, presença de refluxo gastroesofágico e também um abuso da voz afetam a qualidade da mesma, e aceleram o processo de envelhecimento.

Por outro lado, fazer o oposto dessas práticas ajuda a preservar a voz por mais tempo. Pessoas que abusaram muito da voz, ou hábito de ingestão de álcool e fumo prejudicam a voz. No caso do canto, é importante que a pessoa enxergue a voz como um instrumento, e tome os devidos cuidados para preservá-la, em especial as práticas de aquecimento e desaquecimento vocal após apresentações.

Além da preservação vocal, Gampel considera que é importante que as pessoas saibam se adaptar às inevitáveis mudanças que atingirão a voz, e o canto, com o tempo.

Evelyn considera que o envelhecimento da voz torna mais difícil para cantores atingirem notas mais agudas, e demanda um aparelho respiratório mais potente. Nesse sentido, ela aponta que faz sentido separar idosos e adultos para realizar uma avaliação técnica, por mais que as mudanças na voz variem a cada pessoa. "É muito difícil comparar uma voz de um idoso, colocar em um mesmo grupo de um adulto de 20 anos. A qualidade vocal é diferente, a extensão é diferente", opina.

A imagem dos idosos na televisão

Indo além da qualidade vocal dos participantes, a nova versão do programa também pode ter um outro mérito dependendo de sua abordagem. A análise é de Cíntia Liesenberg, professora da Pontifícia Universidade Católica de Campinas que estudou as representações de idosos na mídia durante seu doutorado.

Em suas pesquisas, a professora notou uma tendência recente, de explorar a velhice como um tema diverso, com diferentes formas de ser vivenciada. Apesar disso, ela ainda notou uma certa valorização da juventude, inclusive com comentários em reportagens que tratavam a velhice como algo pejorativo.

Ela considera que é importante refletir sobre a decisão de dividir adultos e idosos na competição, e entender o motivo por trás disso, mas que não seria algo necessariamente negativo.

"É uma forma grande de dar visibilidade para a população mais velha, ver a qualificação social desses idosos, uma oportunidade de demonstrar a possibilidade de uma vivência mais plena da velhice, da busca e realização de um sonho, construção de novos projetos", defende Liesenberg.

Nesse sentido, a pesquisadora afirma que é importante analisar se o programa acabará caindo nos dois estereótipos que geralmente são associados à velhice, de um lado a ideia de um idoso totalmente passivo, incapacitado pelo envelhecimento e do outro um idoso que é tratado como jovem, sem enfrentar nenhuma oscilação ou desafio que a idade avançada pode trazer.

"Estamos em um momento de mudança de patamar populacional, envelhecimento. Existem pessoas mais velhas com melhores condições de saúde, mais qualidade de vida, até por avanços tecnológicos, mas não podemos esquecer que a velhice tem uma maior vulnerabilidade, pode gerar dependência", ressalta.

E o envelhecimento populacional pode ser importante não apenas ao analisar os participantes, mas também ao entender o que justificaria a criação do programa. Liesenberg explica que o aumento da expectativa de vida acabou formando um novo pedaço do mercado consumidor que vem crescendo, o dos idosos.

"O mercado atende a demandas sociais, e é um mercado que precisa olhar mais as características do público mais velho, melhorar a oferta do que é apresentado para ela, porque é uma população muito diversa", pontua.

Assim, o programa teria esse potencial de atender ao interesse de novos consumidores, e ao mesmo tempo dar voz aos cantores: "a velhice era vista como declínio, hoje em dia os idosos estão em condição de ocupar outros espaços, é um momento de maior participação efetiva deles. Essas histórias passam por um percurso, são histórias de vidas interessantes, dá uma certa esperança".

A professora afirma que é importante que o espectador tente prestar atenção na forma como os idosos serão mostrados, e se o The Voice para idosos conseguirá aproveitar o potencial de representação que possui. "Não podemos trazer nem pra um universo que obriga a juventude eterna nem para um que infantiliza. Há um adulto ali, com uma história de vida, e isso é importante, inclusive para quem vai ver o programa ou está fazendo ele. É uma questão de respeito mesmo."

*Estagiário sob supervisão de Charlise Morais

Estadão
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