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Empenho e desafio: o cotidiano estudantil de crianças surdas na quarentena durante a pandemia

Adaptação e inclusão em sala de aula virtual não são realidade para todos e alunos dependem de dedicação dos pais

11 mai 2020 - 11h47
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Hoje, depois de um mês de aula, Joana está mais adaptada. As crianças só abrem o microfone quando solicitadas e falam uma de cada vez, o que diminuiu muito o barulho de fundo. A garotinha voltou a ter confiança para participar das aulas. "O bom dessa loucura toda é que estamos desenvolvendo novas habilidades nas nossas crianças também", avalia a mãe.

Outra dificuldade é com os vídeos pedagógicos enviados para tarefas de casa. Muitas vezes, eles têm uma qualidade de som ruim. E nenhum deles têm legenda, que seria a acessibilidade adequada para a Joana, e nem janela de Libras, outra possibilidade para os surdos sinalizados.

A escritora e palestrante Lakshmi Lobato Austregesilo, que é deficiente auditiva desde criança, ressalta que a lei não fala em inclusão escolar para aulas a distância. "E de repente todo mundo foi pego tendo que ensinar as crianças em casa com vídeoaulas. Vi as mães e pais dos grupos falando sobre a falta de acessibilidade. Adaptação e inclusão em sala de aula já não são realidade para todos, depende da escola, do tipo de adaptação que aquela criança precisa, de informação para as famílias. Imagina essa realidade colocada na era virtual sem nenhum preparo para isso", analisa.

A falta de acessibilidade nos materiais escolares é um desafio também para Maurícyo de Oliveira, de 11 anos, e que está no 6° ano do ensino fundamental. O garoto não escuta desde que nasceu e é usuário de dois implantes cocleares desde o primeiro ano de vida. A mãe dele, Geraldine Brandeburski de Oliveira, afirma que teve de traçar uma estratégia de adaptação para que o fiho pudesse acompanhar o conteúdo das videoaulas. "Tenho que assistir com ele. Implantados deficientes auditivos e surdos apresentam dificuldades com palavras novas. Tudo tem que ser explicado e mostrado. Necessitam de legendas. O aplicativo adotado pela escola foi o Microsoft Teams. As legendas só têm em inglês, então tive que usar computador e celular juntos. E usar um aplicativo que se chama web captioner para legendar as falas. Melhor seria se mandassem um texto já escrito antecipado e adaptado com imagens", ressalta.

Daniel, de sete anos, é filho de Simone Silva. No 2° ano do ensino fundamental, o garoto é um surdo oralizado e não faz uso de Libras. "Com dois anos a gente percebeu que ele não falava direito e a pediatra dizia que era normal. A gente decidiu procurar uma fonoaudióloga e ela sugeriu que fosse feita a audiometria. Fizemos alguns testes e foi constatado que o Daniel tinha uma surdez de moderada a severa. Foi indicado uso de aparelhos auditivos. Essa notícia é muito dolorosa. Assim que chega para a família, a gente passa um bom tempo lutando contra essa dor, chorando e buscando uma resposta, mas a gente se adapta e não dá para ficar parado", lembra.

No ano passado, Daniel acordou um dia sem ouvir nada. "Ele dormiu ouvindo e acordo totalmente surdo. Nós já tínhamos um acompanhamento médico e prosseguimos com a cirurgia para o implante coclear, numa das orelhas. A outra ele ainda está com aparelho auditivo, sendo um usuário bimodal", afirma Simone Silva

Para Daniel, que é dependente realmente do áudio, a complementação visual é muito importante nas aulas online. "A maior dificuldade com certeza é o áudio porque a maioria das aulas tem muitos vídeos e áudios das professoras falando com os alunos. Nem sempre o sinal de internet ajuda. Em casa também, durante as aulas, a gente tenta deixar um ambiente silencioso, com o mínimo de ruído possível para ele ficar mais atento a aula. O primordial é que tenha uma pessoa da família, mãe, pai, irmão, que fique ao lado dessa criança, que ajude e fique fazendo essa ponte entre ela e a escola, às vezes repetindo, coisas que você percebe que ela não entendeu. É preciso que a família ampare", acrescenta.

Na avaliação da escritora Lak Lobato, é preciso destacar as diversas realidades de crianças surdas e que estão participando das aulas online a quarentena. "Tem pais que conversam com as escolas para pensar em alternativas como receber o conteúdo em PDF e ensinam junto com o professor. Outros que buscaram acessórios para melhorar o áudio e a criança conseguir acompanhar melhor. Outros sentam para ter aulas junto. E outros preferiram ignorar o currículo e ensinar por conta própria. Também fiquei sabendo de gente que desistiu do ano escolar porque o aluno não conseguia aprender e pais não tinham conhecimento para ensinar", diz.

Para ela, criatividade e reinvenção é o ponto chave. "Mas, sobretudo, é uma oportunidade de conhecer de perto as necessidades do seu filho, ver como ele aprende a buscar alternativas para isso. Não ter vergonha de conversar com a escola e cobrar ajuda para contornar o possível obstáculo. E até não ter medo de improvisar soluções. Minhas lives, por exemplo, são legendadas e é uma gambiarra de filmar a tela do computador usando um programa que transcreve a fala. Não fica perfeito, mas ajuda", conclui.

O empenho de mães de alunos com deficiência auditiva na quarentena

A vida de mães acompanhando as aulas dos filhos na quarentena não tem sido fácil. E isso é ainda mais desafiador para as crianças que não ouvem. Além do trabalho e das tarefas de casa, elas tentam de tudo para auxiliar a adaptação dos pequenos.

"Para mim está sendo feito um esforço muito grande porque a minha secretária está na casa dela para não se expor ao covid-19, então, estou tendo que dividir meus horários. Tem horas que faço coisas da casa. Mas eu já me ajustei, sei que em determinados horários tem as aulas. Nos intervalos tem o almoço e vou me organizando. Mas as crianças são tranquilas, minha mais velha já é uma adolescente e faz aula online. Meu marido ajuda também. E o que não dá pra fazer, a gente deixa para outro dia. O mais importante é a gente se manter saudável dentro de casa, né? E inovando para passar bem essa quarentena", diz Simone Silva, mãe de Daniel.

Joana, filha de Mariana Candal, tinha uma situação de inclusão muito bem resolvida na escola regular antes da pandemia. "Foi um baque para mim quando ela se viu perdida nas aulas online. Foi muito frustrante, uma sensação de retrocesso. Depois do primeiro mês posso dizer que hoje está mais fácil. Ela já está acompanhando sozinha a maior parte do tempo, me chama em momentos esporádicos", ressalta a mãe da garotinha.

Apesar de a filha estudar em um colégio particular e obter bons resultados, a publicitária desabafa. "Não houve nenhuma proatividade de entrarem em contato para pensarem no que poderia ajudar ou minimizar as dificuldades. É como ser jogada aos leões. Isso é bom em alguns aspectos porque nos faz crescer, aprender, desenvolver outras habilidades, mas a criança com uma deficiência precisa ter um olhar diferenciado, para que esses obstáculos tenham uma proporcionalidade adequada e que não se tornem barreiras intransponíveis provocando bloqueios, angústias, sofrimentos desnecessários", afirma.

Estadão
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