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'Troca de farpas mostra descoordenação do governo', diz José Álvaro Moisés

Cientista político e professor da Universidade de São Paulo avalia que diálogo com partidos e parlamentares é fundamental para aprovação de projetos como a reforma da Previdência

25 mar 2019 - 12h08
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As críticas públicas entre o presidente Jair Bolsonaro e Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara dos Deputados, sinaliza uma descoordenação e um desgaste do atual governo, que completará três meses no fim desta semana. A avaliação é do cientista político José Álvaro Moisés, professor da Universidade de São Paulo, e coordenador de pesquisas sobre qualidade da democracia.

Para o pesquisador, o presidente precisa entender que o sistema político - no Brasil e no mundo - envolve negociação com partidos e representantes da sociedade. "A retórica crítica contra a chamada 'velha política' não abriu espaço, até agora, para a definição do que é 'nova política'", avalia. Segundo ele, projetos prioritários para o governo, como a reforma da Previdência, podem ter dificuldades para avançar caso o cenário se mantenha.

Moisés afirma ainda que a polarização que marcou as eleições 2018 está afetando negativamente a democracia brasileira e comprometendo o funcionamento das instituições. "Um dos pontos centrais da democracia é o princípio de fiscalização e controle interinstitucional. Por exemplo, é papel de o Legislativo fiscalizar o Executivo. E do Judiciário monitorar a ambos do ponto de vista dos princípios constitucionais. Se houver contestação dessas funções, perdemos uma dimensão central da democracia". Abaixo, os melhores trechos da entrevista.

O Brasil tem vivido uma crise entre o Planalto e o Legislativo, com os chefes de cada Poder trocando críticas públicas. O presidente Jair Bolsonaro usou sua viagem ao Chile para tratar, em diversas falas, da crise política brasileira. Como avalia essa situação?

A troca de farpas entre o presidente Jair Bolsonaro e Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados, mostra até onde chegou o desgaste e a descoordenação do governo. Bolsonaro insiste em transferir a responsabilidade da negociação para aprovação da reforma da Previdência para Maia, e este está indicando que não vai substituir o governo no indispensável diálogo com os partidos e os parlamentares que têm vários pontos de crítica contra a proposta do governo, em particular, a proposta previdenciária dos militares.

O cenário revela a dificuldade de aprovação da principal agenda do governo, mas Bolsonaro não dá sinais de que essa é realmente a sua prioridade, deixando margem para muitas dúvidas que só enfraquecem a posição de seu governo.

O que significa o discurso de que esse tipo de negociação seria típico da "velha política"?

Bolsonaro ainda não desceu do palanque, como indicam vários líderes do Congresso. E a retórica crítica contra a chamada "velha política" não abriu espaço, até agora, para a definição do que é "nova política". O presidente não consegue entender que o sistema político brasileiro, como de resto do mundo inteiro, envolve negociação com os partidos e com os representantes da sociedade para a formação da coalizão necessária à aprovação de suas propostas.

Se não enfrentar esse desafio, indicando em que termos pretende dialogar com os líderes partidários, vai paralisar de vez as iniciativas de aprovação de seus projetos no Congresso. O cenário é o pior possível se se levar em conta que o País ainda não conseguiu retomar o crescimento econômico, a criação de novos empregos e o aumento da renda média dos brasileiros. Bolsonaro parece não ter entendido ainda a premência da reforma da Previdência, apesar dos esforços de esclarecimento de seu ministro da Economia.

Temos hoje no Brasil um conflito entre as instituições. Como avalia esse momento?

Uma parte da classe política está revoltada com o protagonismo do poder judiciário. E classifica isso de populismo penal ou protagonismo antidemocrático. Por sua vez, autoridades do Judiciário se sentem incomodadas por serem criticadas e terem seu protagonismo contestado, não só por parlamentares, mas também por setores da sociedade.

Haja vista que o presidente Dias Toffoli abriu um inquérito para investigar pessoas que estão atacando instituições como o Supremo Tribunal Federal e seus ministros. Interpreto isso como um sinal de que a polarização política afetou tanto atores como instituições, e principalmente, parlamentares e juízes.

Quais as consequências dessa polarização?

A polarização que dividiu a sociedade está sendo levada para dentro das instituições e está afetando as relações interinstitucionais. Isso é muito ruim para a democracia. Um dos pontos centrais da democracia é o princípio de fiscalização e controle interinstitucional. Por exemplo, é papel de o Legislativo fiscalizar o Executivo. E do Judiciário monitorar a ambos do ponto de vista dos princípios constitucionais. Isso está na letra da Constituição. Se houver contestação dessas funções, perdemos uma dimensão central da democracia.

Então, não faz o menor sentido que a Corte Suprema seja contestada em suas funções. Tem movimentos nas redes sociais, por exemplo, pedindo até a extinção do STF por causa de suas decisões, o que é um erro. Mas, por outro lado, também não se justifica que críticas ao Supremo, feitas em termos adequados por pessoas de diferentes orientações políticas, não sejam admitidas como normais e tomadas como ameaças que precisam ser investigadas.

Na democracia o soberano não é mais o rei ou o chefe de Estado, mas os cidadãos. E eles exercem a sua soberania através das instituições. Se elas perdem sentido ou são ameaçadas em suas funções, a democracia tem a sua qualidade rebaixada. Precisam ser preservadas em um ambiente de diálogo democrático.

Na sua avaliação, qual o simbolismo de uma Operação como a Lava Jato prender dois ex-presidentes em menos de um ano?

O Brasil ainda é uma democracia jovem, de pouco mais de 30 anos. Nesse contexto, a afirmação do império da lei é uma coisa que está demorando mais do que devia para se consolidar. A lei garante direitos, mas ao mesmo tempo subordina os cidadãos à sua aceitação, e isso vem sendo construído a duras penas no Brasil.

A Lava Jato, por exemplo, sinalizou a emergência de um Sistema de Integridade, formado pela Polícia Federal, Ministério Público Federal, Justiça Federal, tribunais de contas e a Receita Federal, comprometido a fazer cumprir o que lei estabelece no combate a crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. Mas enfrenta muitas resistências.

Desse ponto de vista, o simbolismo é positivo, significa que não são apenas pessoas comuns que estão subordinadas à lei e ao braço da Justiça. Mesmo políticos poderosos estão subordinados a isso. Mas nada justificativa que alguns procedimentos punitivos se deem de forma alheia ao que estabelecem as regras jurídicas, direitos individuais e princípios como a presunção da inocência.

O senhor vê semelhanças entre a prisão de Michel Temer e a de Luiz Inácio Lula da Silva?

Essa prisão envolve um paradoxo. Por um lado, sinaliza que ninguém está acima da lei. E ex-presidentes que tiveram muito poder, e muitas vezes continuam tendo, podem ser investigados, processados e presos. Isso é uma sinalização positiva do ponto de vista democrático. Mas é paradoxal que a justificativa da prisão se choque com alguns princípios jurídicos e dispositivos legais.

A prisão preventiva de Temer tem algo semelhante à controversa condução coercitiva do Lula de tempos atrás. A prisão preventiva se justifica quando a pessoa acusada fugiu ou está destruindo provas de crimes cometidos. Nesse caso, não está claro se isso estava acontecendo. O MPF sustentou que o ex-presidente coordenava há 40 anos uma organização criminosa, e se baseou em delações para isso. Mas não sei se há evidência consistente de que efetivamente estava havendo destruição de provas.

Estadão
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