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"Não há muita diferença entre o vício em drogas e no celular", diz psicólogo

A BBC entrevista o psicólogo espanhol Marc Masip, que defende que "o celular é a heroína do século 21"

18 out 2021 - 13h19
(atualizado às 14h20)
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O psicólogo espanhol Marc Masip trabalha com jovens para educá-los sobre o uso adequado da tecnologia e evitar a dependência
O psicólogo espanhol Marc Masip trabalha com jovens para educá-los sobre o uso adequado da tecnologia e evitar a dependência
Foto: Marc Masip / BBC News Brasil

Se você fica ansioso ao imaginar um mundo sem Facebook, Instagram ou WhatsApp, preste atenção no seu grau de dependência de novas tecnologias. Você pode estar viciado.

Este experimento já foi realizado de forma involuntária no dia 4 de outubro, quando milhões de pessoas ficaram frustradas quando as três plataformas acima ficaram fora do ar por seis horas.

Uma frustração que, em casos extremos, há quem se atreva a comparar com a síndrome de abstinência, vivenciada por quem abandona as drogas, o álcool ou o cigarro.

Pode parecer uma comparação exagerada, mas o psicólogo espanhol Marc Masip a defende com unhas e dentes.

"O celular é a heroína do século 21", diz ele sem rodeios.

Parte de seu trabalho consiste em oferecer tratamento em clínicas de desintoxicação para viciados em tecnologia.

Uma reabilitação que pode se tornar ainda mais difícil do que a das drogas, "porque todo mundo já sabe que estas fazem mal, enquanto as novas tecnologias todos nós usamos sem saber o tamanho do dano que podem causar", explica Masip em entrevista à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC.

BBC News Mundo - Quando ficamos sem Facebook, WhatsApp e Instagram, você rapidamente foi ao Twitter comparar as tecnologias com a heroína e nos desejar ironicamente uma "feliz síndrome de abstinência". Muitos podem considerar uma comparação exagerada. Por que você a defende?

Marc Masip - Porque foi uma loucura, e aí você se dá conta da importância que damos a elas.

As pessoas enlouqueceram quando na realidade nada estava acontecendo. Estamos todos um pouco perdidos. Os vícios são todos vícios, e não há muita diferença entre o vício em drogas e o vício em telefone celular.

É verdade que as drogas não podem ser bem usadas, e o celular pode. Isso é uma vantagem.

Tem gente que compara o celular a um martelo, dizendo que pode ser bem ou mal utilizado, mas não conheço nenhum viciado em martelo.

Quando não dispomos da tecnologia, como acontece quando o WhatsApp ou o Facebook caem, todos nós sentimos um mal-estar, uma síndrome de abstinência. A comparação com a heroína me parece boa porque ainda não temos consciência de todos os danos que pode chegar a causar.

Quando a heroína começou a ser consumida, não se sabia o quão ruim era, e no final morreu muita gente. Espero que não seja assim agora, mas tem gente que morre porque usa o celular até quando está dirigindo.

Sem contar o que certas pessoas sofrem com casos de bullying nas redes sociais. Há consequências para a saúde mental que ainda não entendemos por conta do abuso do telefone celular.

BBC News Mundo - Com a heroína, havia dois finais: você morria de overdose ou era enviado para uma clínica de desintoxicação. E quanto ao vício em tecnologia?

Masip - Já trabalhamos em clínicas de desintoxicação, porque o vício pode levar a problemas de saúde mental graves e até físicos.

Estamos vendo consequências no desempenho acadêmico dos jovens, acidentes de trânsito que podem levar ao pior, ansiedade, estresse, frustração, transtornos alimentares desencadeados pelo Instagram.

Vemos como os jovens se comunicam por meio das telas de forma rápida, fácil e confortável, mas cara a cara eles são covardes e não têm ferramentas suficientes para sentir empatia, olhar ou abraçar.

Mas o pior é acima de tudo a dependência, como o humor das pessoas muda para pior quando ficam sem Facebook ou WhatsApp.

É um problema, porque a dependência é o oposto da liberdade.

Marc Masip tenta reeducar os jovens no que se refere ao bom uso das novas tecnologias
Marc Masip tenta reeducar os jovens no que se refere ao bom uso das novas tecnologias
Foto: Desconecta / BBC News Brasil

BBC News Mundo - O que vocês fazem na clínica de desintoxicação?.

Masip - Oferecemos um tratamento de reeducação sobre o bom uso das redes e das telas. É uma tarefa muito complicada.

Se você pensar bem, quando você lida com o vício em heroína, cocaína ou maconha, parte do pressuposto que é socialmente mal visto. As pessoas presumem que fumar, beber e se drogar faz mal.

Com as tecnologias é mais difícil porque não se trata de deixar de usá-las. O que você tem que fazer é reeducar para que sejam melhor utilizadas. E não é nada fácil quando todo mundo ao seu redor também está usando.

No nosso tratamento, é muito importante que o paciente supere essa fase de conscientização, em que reconhece até que ponto é bom usar uma tecnologia.

'A dependência é o completo oposto da liberdade'
'A dependência é o completo oposto da liberdade'
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

BBC News Mundo - Isso me lembra a situação que muitos pais enfrentam, quando se propõem a manter seus filhos mais novos longe da tecnologia, mas não podem impedir que todos ao seu redor a utilizem. No fim das contas, muitos acabam cedendo porque não querem que seus filhos se sintam excluídos.

Masip - Esse é um falso medo dos pais por carinho e amor.

Achamos que nossos filhos não terão amigos se não tiverem telefone e redes sociais, mas isso é mentira. Crianças com telefone podem ou não ter amigos, e crianças sem telefone podem ou não ter amigos. Isso está mais ligado à personalidade e ao ambiente familiar e escolar.

Mas claro, pensamos que, como todas as crianças ou adolescentes têm telefone, as nossas também precisam ter.

Temos que proteger as crianças das telas para que não precisem tanto delas. Para uma criança, ter um smartphone antes dos 16 anos traz mais desvantagens do que vantagens. Sem formação, sem saber usá-lo da forma correta, o lado ruim de um celular tem mais peso do que o lado bom para a criança.

Porque, no fim das contas, o que um smartphone oferece? Que seus pais tenham controle caso algo aconteça com você? Isso também pode ser feito com um telefone normal. Na verdade, se vierem a te sequestrar, dificilmente deixarão você ligar para seus pais.

Se os adolescentes têm um smartphone, é sobretudo por causa das redes sociais. Mas o que as redes sociais oferecem para você? Curtidas? Essa não é uma contribuição real. As curtidas são apenas uma injeção cavalar de dopamina.

É importante entendermos que em nossas redes sociais sempre mostramos nossa melhor versão. Mas essa melhor versão nem sempre está próxima da realidade. Na verdade, quanto mais o eu virtual se afasta do eu real, mais frustração é gerada.

E essa frustração é muito próxima da dependência e do vício.

É importante educar, sobretudo os mais jovens, que não é preciso querer sempre mostrar o que não somos ou o que gostaríamos de ser para ser aceitos. É preciso trabalhar muito a autoestima dos jovens.

Masip é contra disponibilizar celular para menores de 16 anos
Masip é contra disponibilizar celular para menores de 16 anos
Foto: Marc Masip / BBC News Brasil

BBC News Mundo - Fala-se muito que a tecnologia está avançando a uma velocidade que nem sequer entendemos, não só a gente, mas tampouco as próprias instituições. Como podemos nos proteger de algo que nem sequer entendemos totalmente?

Masip - Estamos vendidos diante do avanço tecnológico porque as empresas buscam que seu uso seja o maior possível em seu próprio benefício. Quase não há regulamentação, e educação para as famílias e nas escolas sobre o uso responsável da tecnologia é muito pobre.

A solução passa por leis que regulamentam o uso adequado das novas tecnologias e que não existem hoje.

Não há ferramentas para educar a população mais jovem, que é quem mais utiliza (essas tecnologias). Estamos deixando a tecnologia avançar livremente, e as consequências são evidentes.

No início de outubro, Whatsapp, Instagram e Facebook ficaram fora do ar por seis horas
No início de outubro, Whatsapp, Instagram e Facebook ficaram fora do ar por seis horas
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

BBC News Mundo - Apesar de posições como a sua, a sensação é que o mundo está se tornando ainda mais interconectado. Que perspectivas nós temos então? Pelo o que você diz, parece preocupante.

Masip - É verdade que o mundo tecnológico estimula que o futuro continue sendo muito tecnológico. Mas devemos ter clara a premissa de que o real sempre vai superar o virtual.

Por mais tecnologia que criem e mais dinheiro que invistam, nada será capaz de dar um abraço como outra pessoa te dá ou um beijo como a pessoa que você ama.

Enquanto houver gente que continue tendo isso claro e entendido, já teremos um grande ganho. É verdade que a tecnologia vai pressionar, mas também acredito que os humanos farão o mesmo.

Acredito que daremos um pequeno passo atrás na tecnologia para dar três à frente no (lado) humano. Partir do princípio que, sim, temos muita tecnologia, mas há limites.

Chegará o momento em que aqueles que utilizam bem as redes e o celular serão mais cool do que quem fica hiperconectado o dia todo.

BBC News Mundo - Há uma técnica que nos permite autodiagnosticar nosso grau de dependência?

Masip - O autodiagnóstico é sempre complicado.

Você deveria se deixar ajudar, mas nem sempre é fácil. Posso indicar alguns sinais para detectar dependência ou vício.

Primeiro, meça sua síndrome de abstinência. Se você precisa consumir algo quando não tem. É algo bastante evidente nas drogas, mas também acontece com as novas tecnologias.

Observe também se você substitui atividades, se você deixa de fazer algo para ficar mais atento ao celular. Isso pode acontecer quando você passa tempo com a família, trabalha, dirige, pratica esportes ou sai de casa.

Preste atenção se o celular faz você se evadir. Se você pega (o celular) para ver uma coisa, e passa uma hora sem que você perceba. Com esses exemplos, você pode se avaliar muito bem.

BBC News Mundo - E como podemos usar a tecnologia com sabedoria?

Masip - Você tem que aplicar muito bom senso.

É importante que a gente use a tecnologia quando nos oferece um serviço. Por isso pagamos por ela. Agora, por exemplo, tenho que ir a uma reunião. Então, eu vou usar a tecnologia para me levar ao ponto de encontro.

Você também pode aproveitar seu celular para enviar um e-mail sem ter que entrar no computador. Mas não utilize (o celular) durante a refeição ou quando estiver com outras pessoas. Nem quando você trabalha, passa um tempo com os amigos, com seu parceiro ou antes de dormir.

Não deixe que passe por cima de você. O WhatsApp pode ser uma ferramenta muito útil, mas se o servidor cair, também não é imprescindível.

Criança jogando em tablet
Criança jogando em tablet
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

BBC News Mundo - Há governos como o da China que estão intervindo diretamente, especialmente com videogames para menores de idade. Mas essas intervenções são suficientes? O que seria suficiente para realmente causar um impacto contra o vício em tecnologia?

Masip - Os governos precisam implementar leis imediatamente, como proibir telefones na sala de aula, impor normas mais rígidas se você dirigir com o celular e restringir seções claramente viciantes de certos aplicativos.

Cada pai educa como pode ou como deseja, mas seria preciso haver uma regulamentação sobre as grandes empresas para que não possam fazer tudo o que querem.

Não é normal que qualquer menor de idade possa entrar para ver pornografia ou jogar um videogame nocivo que seja violento, tenha recompensas financeiras ou seja castigado se abandonar uma partida.

Temos que regulamentar as empresas de tecnologia para o bom uso.

BBC News Mundo - Mas como empresas globais e interconectadas podem ser regulamentadas sem um consenso global? Parece um tanto distante.

Masip - É complicado, mas já vimos que com o coronavírus a maioria do mundo chegou a um acordo.

Mas, sim, não basta a solução que se impõe em cada casa. A solução deve ser global.

É preciso regulamentar os próprios aplicativos, as próprias empresas, para que depois as coisas cheguem bem ao resto do mundo, sem elementos nocivos ou viciantes.

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