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Dentro de casa em um sábado à tarde, refletiu sobre o assunto e reparou que também não recebia mais as notícias desejáveis

13 jun 2021 - 15h10
(atualizado às 15h24)
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Ser perseguida por promoções de jantares românticos dois dias depois do Dia dos Namorados já era demais para ela. Ela havia ligado para uma amiga expert em mídias sociais para saber se era normal, ou melhor, se era verdade que os celulares ouviam nossas conversas e, por isso, estavam enviando indiretas via propagandas, só para "jogar na cara" sua falta de habilidade em arranjar um namorado.

Não que datas fossem importantes para ela, nunca foram. Aniversário e Natal, ok, mas dias comemorativos puramente comerciais? Nem quando tinha um namorado celebrava, aliás, nem lembraria a data se não fosse por insistência de outra colega, que resolveu cadastrá-la no Tinder, aplicativo "infalível" para encontrar o par ideal. Depois desse clique até ingênuo, o tal famoso algoritmo, segundo a amiga expert, entendeu que ela queria um namorado - queria não, ele deve ter entendido que ela precisava desesperadamente, pois sua vida online se transformara a partir de então em um eterno lembrete da data em que é proibido estar desacompanhada.

A questão é que a leitura, pelo algoritmo, de sua situação amorosa era verdadeira, mas a perseguição das propagandas de amor teve um efeito devastador na autoestima dela. A cada post no Instagram ou Facebook, a cada e-mail em sua caixa de correio, a cada banner que pulava nos sites que visitava, a mensagem era clara e sem nenhuma sutileza: "corra ou estará sem namorado no dia D". E assim aconteceu. Ela já tinha passado por outras perseguições e acreditava estar "blindada" de sentimentos, afinal, que combinação de números poderia saber mais sobre o que ela queria do que ela mesma?

Alguns meses antes, foram os tratamentos estéticos que a importunaram, quando clicou por "curiosidade" em um banner que mostrava um novo método de emagrecimento. Ela queria emagrecer sim, mas a pesquisa trivial despertou a "fúria da máquina" que parecia pior do que sua mãe, sem meias-medidas para dizer as verdades implacáveis e sem filtro. O computador leu sua mera curiosidade em "vou te lembrar todos os dias de todas as formas que você tem que emagrecer". E, assim, shakes dietéticos, aplicativos de corrida e roupas de treino passaram a ser por meses as únicas notícias que chegavam na sua bolha. O mundo só falava disso. Mas essa dos namorados foi a gota d'água.

Jurou mudar de vida, fechou o Tinder, não clicava mais em propagandas a respeito do assunto em sites, não curtia mais fotos ou comentava nas redes sociais das amigas. Respirava fundo antes de clicar naquela bolsa que parecia gritar de dentro da imagem vibrante da tela do novo computador. Parou de interagir virtualmente nas páginas de suas marcas favoritas e, dentro de algum tempo, foi parando de receber lembretes indesejados. Finalmente estava livre do barulho. Silêncio.

Dentro de casa em um sábado à tarde, refletiu sobre o assunto e reparou que também não recebia mais as notícias desejáveis. Sentia falta de rir dos vídeos engraçados, de dançar as coreografias do seu aplicativo favorito, de conhecer o mundo através de fotos de paisagens e lugares incríveis. Parou de ver aqueles animais fofos que alegravam suas manhãs mesmo virtualmente ou aqueles animais selvagens que mostram a força e a fragilidade humana.

Sentiu saudades de existir nesse outro mundo, de ver suas influenciadoras favoritas mostrando looks do dia e se inspirar em suas produções. Abriu o celular com alegria, pegou uma taça de vinho e comentou sem descanso em todas as contas das redes sociais que apareceram em sua tela. Clicou naquele seu site favorito e abriu telas de sapatos do brechó que adorava pesquisar. Passou certamente mais de uma hora vendo vídeos que a faziam rir e compartilhou todos eles com os amigos. Voltou ao grupo da família. "Estou de volta, pronta para participar!", disse em alto e bom capslock. Até a próxima pausa.

Estadão
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