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'Obsessão por índios deturpa Sínodo da Amazônia', diz bispo

Voz crítica ao encontro convocado pelo papa Francisco, d. Azcona diz que Bolsonaro deve ser enfrentado pela Igreja se atentar contra a Amazônia

11 set 2019 - 12h26
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O bispo emérito do Marajó (PA), d. José Luís Azcona Hermoso, é uma das raras vozes críticas ao Sínodo da Amazônia na Igreja Católica. Aos 79 anos, com a autoridade de quem vive há mais de três décadas na ilha paraense, onde já foi atacado por um búfalo e ameaçado de morte por denunciar a exploração sexual de crianças, o clérigo espanhol afirma que a assembleia convocada pelo papa Francisco ignora a realidade ao dar protagonismo aos indígenas, o que pode tornar "supérfluo" o esforço da Igreja. "A tendência obsessiva por entender a Amazônia desde os povos indígenas como a única deturpa e faz inútil a celebração do Sínodo", disse ele.

Aposentado, d. Azcona não viajará a Roma, mas sugere que o Vaticano discuta a situação da vida urbana, dos negros e a penetração evangélica na região. Ele não é contra a realização do sínodo e defende o direito de a Igreja se posicionar contra a ordem política e a dominação econômica, sem que isso signifique uma ameaça à soberania nacional - preocupação que ele atribui aos militares da reserva no governo federal. "Se Bolsonaro atenta contra o bem da Amazônia, ele deve ser enfrentado", afirmou.

Nos documentos do Sínodo, a Igreja se coloca contra alguns tipos de exploração econômica na Amazônia, entre elas a mineração, e defende as reservas indígenas e ecológicas. Nesses casos, a Igreja se opõe a propostas do presidente Jair Bolsonaro. A Igreja não age politicamente?

A Igreja se posiciona contra todo tipo de dominação. A Igreja no Brasil sempre se apresentou como defensora da justiça e advogada dos pobres, no caso, dos indígenas. E todo católico, todo brasileiro coerente com as exigências da sua humanidade e cidadania, se posicionará com energia e resolução contra todo tipo de dominação econômica e ecológica.

Não sei o que o presidente Jair Bolsonaro pensa, mas se ele atenta contra o bem da Amazônia, da criação, dos direitos comprovados dos indígenas, ele deve ser enfrentado com meios justos, legítimos e eficientes. Isso é o que a Igreja com todo o povo brasileiro deverá enfrentar se for comprovada a existência de projetos gravemente opostos ao meio ambiente, aos indígenas ou ao bem comum da nação.

O Sínodo pode expor o governo Bolsonaro no exterior?

O Sínodo não necessita expor diante do mundo o que já está exposto. O Sínodo poderá externar seu ponto de vista com relação à Amazônia e ao Brasil. É de justiça reconhecer que a Igreja, um Sínodo no seu nível de autoridade, pode em todo momento e em toda parte, também no Brasil, pregar a fé com autêntica liberdade. Ela está incumbida por Jesus Cristo a dar seu juízo moral, inclusive sobre matérias referentes à ordem política quando o exijam os direitos fundamentais da pessoa, das etnias da Amazônia ou a salvação das almas.

O governo afirma que o Sínodo ameaça a soberania nacional.

O Sínodo não atenta contra a soberania nacional. Pelo contrário, ele está em condições, se fiel a Cristo, de relançar os fundamentos da democracia, da igualdade cidadã, do respeito à pessoa, sobretudo, pobre, marginalizada e excluída. O Sínodo é capaz de fazer acontecer a reconciliação nacional. Nunca o Brasil esteve tão cindido, tão polarizado. Se quiser sobreviver, o Brasil tem necessidade absoluta, urgentíssima, de reconciliação, que se concretiza no amor aos inimigos. Este é o primeiro desafio que o Sínodo e a Igreja de Cristo têm que enfrentar.

Por que os militares são o segmento do governo que mais manifestam resistência ao sínodo?

Existe um grande numero de militares bem informados que não manifestam resistência nenhuma ao Sínodo. Por outra parte, é possível que militares da reserva manifestem certa resistência a este evento.

O governo tentou interferir no Sínodo?

Não me consta. Se o tivesse feito teria retrotraído o Brasil ao Médio Evo (Idade Média), ao Josefinismo, a um intento anacrônico e absolutamente inócuo.

O sínodo ignora algum tema relevante da Amazônia?

O Instrumento Laboris (Documento de Trabalho, texto que orienta as discussões no Vaticano) ignora completamente a realidade da Amazônia, fazendo supérfluo o Sínodo da mesma. Os protagonistas são as etnias indígenas que no Brasil constituem uma minoria mínima, um pouco mais numerosa em outras nações em território amazônico. A tendência obsessiva por entender a Amazônia desde os povos indígenas como a única Amazônia deturpa e faz inútil a celebração do Sínodo.

Em concreto, o rosto amazônico hoje é majoritariamente pentecostal. O desprezo prático dos afro-amazônicos, mais numerosos no Brasil que os indígenas, é uma injustiça, uma atitude completamente contraditória com o que deve ser o caminho sinodal. Os caboclos que povoam as imensas margens do Amazonas infinito são um grupo humano excluído violentamente do mapa da mesma, por uma atitude seletiva que necessariamente perverte a realidade. Muito triste! Os amazônidas, além do mais, não habitam mais no interior, no mato, nas águas. Em sua grande maioria habitam em cidades. Sua cultura, portanto, é urbana. Como se pode ser tão cego?

Como o senhor conclui que a Amazônia não é mais católica?

Efetivamente, a Amazônia, mais propriamente a brasileira, não tem maioria católica. Em algumas regiões da Amazônia oriental, o número dos pentecostais chega a 80%. É voz comum nas reuniões pastorais na Amazônia. E essa penetração é especialmente notável em etnias indígenas. No resto da Pan-amazônia não saberia dizer. É necessário distinguir entre evangélicos e pentecostais. Estes últimos não são considerados pelos próprios evangélicos como merecedores deste nome.

O que motiva as preocupações com os pentecostais? É com alguma igreja específica?

A degradação, a pulverização do evangelho a partir da própria Bíblia, negando, com ela na mão, que "ninguém pode servir a dois senhores" ou "não podeis a servir a Deus e ao dinheiro". Segundo eles, é Deus quem abençoa com dinheiro abundante, com prosperidade ilimitada aquele que "aceitando Jesus" se faz adepto de determinada igreja. É extremamente grave. O princípio fica negado durante 24 horas de programação das TVs pentecostais ou nos seus cultos.

A sede de poder econômico com frequência associada nas igrejas pentecostais à fome pela dominação política e o controle social oferece uma distorção evidente do sentido da fé, da comunidade cristã e da missão da mesma. Abertamente, temos que reconhecer com gratidão a Deus que muitos pentecostais defendem uma ética sexual e familiar digna, respeitosa dos valores evangélicos, serena, militante e nobre.

O presidente Jair Bolsonaro tem privilegiado evangélicos em seu governo, frequentado templos, e anunciou que vai nomear um jurista "terrivelmente evangélico" para o Supremo Tribunal Federal. O que pensa sobre isso?

Penso que o critério para responder a esta pergunta não é o fato de que o presidente Bolsonaro privilegie pentecostais em seu governo. Entre eles existem pessoas dignas. Seria perverso nomear corruptos, traidores, inimigos do Brasil, enfim, pessoas que deveriam estar reclusas como criminosos no presídio. E são eles tantos no Brasil de um lado e de outro, de uma determinada ideologia e da outra, que se identificam na pertença à mesma raça de víboras e que estão soltos ou prisioneiros.

Grupos conservadores católicos se levantaram contra o sínodo, nas redes sociais e nas ruas. O sr. se identifica com esses movimentos?

Conservador é um termo não propriamente teológico, pode designar várias realidades ou conteúdos sociológicos, culturais, históricos. Se "conservador" designa a identidade cristã como membro da Igreja, eu não sou "conservador", mas "fiel", enquanto essa fidelidade é a única a assegurar uma autêntica evangelização atual para um Brasil absolutamente desumanizado, de pensamento fraco e sem garra para transformar a realidade nacional.

É possível dimensionar a influência desses conservadores?

Tanto "conservadores" como "progressistas" hoje no Brasil são grupos letárgicos, sonolentos, incapazes de criar algo novo, de ordenar minimamente o caos e a inconsciência de tantos brasileiros verborrágicos, já exaustos e exauridos.

Em que aspecto o sínodo pode ser considerado uma ruptura na Igreja, como dizem alguns religiosos?

Enquanto se dilui a revelação de Cristo. No Instrumento de trabalho, Cristo é negado como Crucificado, quer dizer, é sequestrado no texto. Não somente porque não aparece uma só vez o nome glorioso de Crucificado. O mais grave é o fato de Ele ser silenciado por completo nas grandes questões como diálogo, culturas, etnias, escatologia, esperança. Por outro lado, o nivelamento entre Jesus Salvador e os outros interlocutores: Culturas, etnias, religiões, termina com o ser e a missão da Igreja. Ele rebaixa e nega a identidade de Cristo como Senhor e Salvador, Deus e homem. De fato, um insulto grave contra o nome de cristão.

Ao mesmo tempo, e o dizemos com tristeza, um sinal alarmante do secularismo radical que grassa em alguns âmbitos da Igreja Católica. A agressão a Cristo, a sua anulação sumária, termina com a única esperança da Amazônia e de todos os seus povos, fechando assim de modo dramático e cego o acesso a uma verdadeira ecologia, à luz e sob o poder do evangelho para transformar as atitudes necessárias com relação a natureza, a ecologia, a casa comum.

Estadão
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