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Por que uma consulta extraoficial pela independência do Curdistão leva tensão a 4 países

Votação popular é criticada por poderes regionais e mesmo a ONU, mas minoria étnica no Iraque defende direito de realização; países vizinhos temem 'contágio separatista' em suas populações curdas.

22 set 2017 - 13h49
(atualizado às 14h24)
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Comício pró-independência curda
Comício pró-independência curda
Foto: BBC News Brasil

No início da semana, as Forças Armadas da Turquia fizeram manobras nas cercanias da cidade de Silopi.

Nada anormal, a não ser pelo fato de que Silopi fica a menos de 10 km da fronteira com o Iraque. Mais precisamente a fronteira com o Curdistão, a província semiautônoma no norte do país vizinho e que na segunda-feira realizará uma consulta extraoficial em que discutirá sua independência.

Uma vitória do sim poderá criar tensões em quatro países. Isso porque os curdos são um povo sem pátria e com um histórico de repressão e perseguições - no Iraque, por exemplo, estima-se que até 180 mil deles podem ter sido massacrados entre 1986 e 1989 pelo exército a mando do ditador Saddam Hussein.

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Sua população estimada em 30 milhões de pessoas está espalhada pelo Oriente Médio e outros continentes. No Iraque, por exemplo, eles são estimados em seis milhões de pessoas, vivendo majoritariamente no Curdistão.

Na Turquia, estima-se quase milhões de curdos, número que passa dos 7 milhões no Irã e de 2 milhões na Síria. Em todos os países, eles são uma minoria. Mas uma minoria que nenhum dos governos gostaria de ver inspirada por uma vitória do "sim" na consulta no Iraque.

O premiê do país, Haider al-Abadi, por exemplo, classificou a votação como inconstitucional.

E a preocupação não é apenas dos vizinhos: nesta sexta-feira, o Conselho de Segurança da ONU alertou para o potencial de desestabilização que o referendo pode provocar e pediu "diálogo e comprometimento". E um comunicado oficial expressou "respeito pela soberania, integridade territorial e unidade do Iraque".

Curdos posam com sua bandeira
Curdos posam com sua bandeira
Foto: BBC News Brasil

EUA, Reino Unido, União Europeia e os principais países árabes se opõem ao referendo. A única voz significativa de apoio veio de Israel, o que não se trata especificamente de um trunfo no Oriente Médio.

Só que analistas internacionais esperam justamente uma vitória dos partidários da independência na votação. Ainda que o resultado não tenha qualquer impacto imediato, pois não existe nas leis iraquianas qualquer mecanismo que permita a secessão.

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Mas por que, então, fazer a consulta?

Mandato

A resposta mais simples é que o timing da consulta tem muito a ver com a política doméstica do Curdistão. O atual presidente da província, Massoud Barzani, está no fim de seu mandato e quer deixar o legado simbólico de ter iniciado formalmente o processo de independência antes das eleições gerais de 1º de novembro.

"O Iraque é um Estado teocrático e sectário, enquanto os curdos têm sua própria língua e cultura. Nós nos recusamos a ser subordinados", disse Barzani a diversos veículos de mídia ocidentais durante a semana.

Um voto pelo "sim" também vai esquentar a causa separatista curda, em especial o desejo de negociar uma separação do Iraque nos próximos cinco a dez anos.

Soldados curdos
Soldados curdos
Foto: BBC News Brasil

A região ganhou autonomia no final da Guerra do Golfo de 1991, com a derrota das tropas de Saddam para a coalizão liderada pelos EUA. O Curdistão ganhou parlamento, ministérios e mesmo exército próprios. A região contou até com uma moeda diferente do restante do Iraque.

E, como parte dos espólios da guerra, o governo iraquiano teve de destinar 17% das receitas do petróleo iraquiano para o Curdistão.

No entanto, os líderes curdos concordaram em provisoriamente voltar a fazer parte do Iraque durante a invasão de 2003, que derrubou Saddam. Washington e Bagdá prometeram um regime de semiautonomia, repasse constante de verbas e mesmo a promessa de negociações sobre a independência como forma de tentar evitar mais instabilidade na região.

O governo central, porém, não cumpriu sua parte, e disputas sobre royalties do petróleo resultaram em cortes nos fundos enviados por Bagdá. Irbil, a capital curda, hoje é marcada por canteiros de obra inativos. A dívida da administração curda é de US$ 20 bilhões.

Líder curdo
Líder curdo
Foto: BBC News Brasil

Recentemente, Barzani disse que a decisão de permanecer parte do Iraque foi "um grande erro".

"Fiquei surpreso com a comunidade internacional. Por que nosso povo não tem o direito de expressar o que quer para seu futuro? Onde está a democracia?"

Soberania

Nos últimos anos, os curdos expandiram as áreas que controlam no norte do Iraque, incluindo jazidas de petróleo e mesmo áreas habitadas por árabes, como a província de Kirkurk.

A região hoje exporta cerca de 600 mil barris de petróleo por dia, usando um oleoduto que liga o Iraque ao Mediterrâneo, passando pela Turquia. Uma façanha para uma minoria étnica sem país e cercada por vizinhos desconfiados.

Mapa das áreas ocupadas pelos curdos no Iraque
Mapa das áreas ocupadas pelos curdos no Iraque
Foto: BBC News Brasil

Ao mesmo tempo, o Curdistão não pode obter empréstimos internacionais com juros baixos ou mesmo comprar armamentos, por exemplo. E as vendas de petróleo da região são frequentemente questionadas por Bagdá na Justiça.

O Iraque controla o espaço aéreo curdo e seus habitantes são obrigados a usar passaportes iraquianos. Isso faz com que, apesar de o Curdistão ser uma região muito mais segura que o resto do país, curdos iraquianos enfrentem os mesmo problemas para obter vistos para visitar países da União Europeia e os EUA, por exemplo.

Próximos capítulos

Além de criticar a consulta, a Turquia pode retaliar a região com o fechamento do acesso ao oleoduto, mas analistas não consideram isso provável. Tampouco uma guerra civil, já que o exército iraquiano e as milícias financiadas pelo Irã não têm condições de enfrentar as defesas bem preparadas do Curdistão.

O governo iraquiano enfrenta ainda a pressão de eleições marcadas para abril ou maio do ano que vem. Nenhum político de destaque se atreverá a discutir uma perda territorial, ainda que o sentimento de muitas autoridades é de que o processo de separação é irreversível.

Isso pode levar Bagdá a tentar barganhar com as autoridades curdas, fazendo concessões em termos de incentivos financeiros e devolução de poderes.

Os dois lados precisam ainda discutir o destino das áreas controladas pelos curdos, mas que contam também com populações árabes, como Kirkuk. Negociações sobre o assunto têm ocorrido desde 2003.

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