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Por que alguns democratas querem aumentar o número de juízes na Suprema Corte dos EUA

Estratégia de elevar quantidade de juízes foi tentada pela última vez há mais de 80 anos, sem sucesso. Mas o debate ressurgiu com a morte da juíza Ruth Bader Ginsburg, uma das principais vozes progressistas do tribunal.

24 out 2020 - 16h26
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Suprema corte dos EUA
Suprema corte dos EUA
Foto: AFP / BBC News Brasil

Nas últimas semanas, vem ganhando força em algumas alas do Partido Democrata americano a ideia de que, caso seja o vencedor da eleição presidencial de 3 de novembro, o ex-vice-presidente e candidato presidencial Joe Biden deveria aumentar o número de juízes da Suprema Corte, a mais alta instância da Justiça dos Estados Unidos.

A Suprema Corte americana tem nove juízes, todos com cargo vitalício, e costuma ser dividida entre uma ala liberal, formada por nomeados por presidentes democratas, e outra ala conservadora, composta por indicados por presidentes republicanos.

A estratégia de aumentar o número de juízes — e, assim, dar mais força a uma ou outra ala — foi tentada pela última vez há mais de 80 anos, sem sucesso. Mas o debate ressurgiu no mês passado com a morte da juíza Ruth Bader Ginsburg, uma das principais vozes progressistas do tribunal.

Apesar de estar na reta final da disputa por um segundo mandato e de aparecer em desvantagem em muitas pesquisas de intenção de voto, o presidente republicano Donald Trump nomeou imediatamente uma sucessora para a vaga deixada por Ginsburg: a juíza Amy Coney Barrett.

A decisão de ir adiante com a nomeação às vésperas da eleição irritou ainda mais os democratas porque, em fevereiro de 2016, quando o juiz conservador Antonin Scalia morreu 11 meses antes do fim do mandato de Barack Obama, os republicanos se recusaram a considerar o nome indicado pelo presidente democrata para a vaga, alegando que o povo americano deveria ter o direito de opinar nas urnas.

Amy Coney Barrett foi escolhida de Trump para o posto desde o princípio
Amy Coney Barrett foi escolhida de Trump para o posto desde o princípio
Foto: Matt Cashore/Notre Dame University/Handout via RE / BBC News Brasil

Scalia só foi substituído em abril do ano seguinte, depois que Trump assumiu o poder e nomeou o juiz Neil Gorsuch. Muitos democratas acusam os republicanos de terem "jogado sujo" e "roubado" essa vaga, que deveria ter sido preenchida por um juiz escolhido por Obama. Muitos republicanos, por sua vez, afirmam que os democratas, em seu lugar, teriam feito o mesmo.

Os juízes nomeados para a Suprema Corte americana precisam ser aprovados pelo Senado, que atualmente, assim como em 2016, é controlado pelo Partido Republicano e liderado pelo senador Mitch McConnell. Com isso, o processo de nomeação de Barrett foi levado adiante rapidamente. A expectativa é de que ela seja confirmada nos próximos dias.

Com a confirmação de Barrett, a Suprema Corte terá seis juízes na ala conservadora e apenas três liberais. Essa supermaioria conservadora deverá ter impacto em decisões futuras sobre diversos temas, como acesso a saúde pública, aborto, liberdade religiosa, direitos LGBTQ+ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros e queer), regulações ambientais e até mesmo sobre as eleições, caso o resultado seja contestado.

Histórico

É nesse contexto que vem crescendo a pressão em algumas alas do Partido Democrata para que Biden considere a possibilidade de aumentar o número de juízes da Suprema Corte caso seja eleito, indicando novos magistrados liberais e, assim, diluindo o peso dos conservadores e restaurando o equilíbrio do tribunal.

Como o número de juízes da Suprema Corte não é determinado pela Constituição americana, um presidente que tenha o apoio do Congresso pode aprovar uma lei para mudar a composição do tribunal. Mas a manobra é cercada de polêmica.

Em seu início, a Suprema Corte tinha seis juízes, nomeados pelo primeiro presidente americano, George Washington, em 1789. No século seguinte, o número de integrantes foi ampliado e reduzido várias vezes até que, em 1869, o Congresso determinou que o tribunal teria nove juízes, composição inalterada desde então.

O último presidente a tentar aumentar o número de juízes da Suprema Corte foi o democrata Franklin Roosevelt, em 1937, após uma vitória esmagadora na eleição do ano anterior, em que conquistou um segundo mandato. Na época, o Partido Democrata controlava não apenas a Casa Branca, mas também a Câmara e o Senado.

Registro dos nove ministros da Suprema Corte dos EUA em 2018
Registro dos nove ministros da Suprema Corte dos EUA em 2018
Foto: EPA / BBC News Brasil

"Quando Roosevelt tentou, ele estava em uma posição de poder extraordinária", diz à BBC News Brasil o especialista em História da Suprema Corte americana Richard Friedman, professor de Direito na Universidade de Michigan. "Mas, apesar disso, não conseguiu levar a mudança adiante."

Roosevelt estava frustrado com o fato de que a Suprema Corte vinha derrubando várias das leis do New Deal, a série de programas implementados por seu governo para impulsionar a economia americana, abalada pela Grande Depressão. Esses programas tinham enorme apoio da população, e as decisões do tribunal eram impopulares.

A proposta de Roosevelt era nomear um novo juiz para cada integrante da Suprema Corte que tivesse mais de 70 anos de idade. Caso a medida fosse levada adiante, ele poderia nomear seis novos membros, aumentando o número de juízes do tribunal para 15.

Argumentos

A justificativa de Roosevelt era a de que o tribunal estava sobrecarregado e precisava de "uma injeção constante e sistemática de sangue novo". Mas o plano foi rejeitado inclusive por alguns membros de seu partido e até mesmo pelo vice-presidente.

Enquanto defensores da medida argumentavam que os juízes, com cargo vitalício, ignoravam a vontade da população em suas decisões, opositores alertavam que a mudança colocava em risco a independência do Judiciário e abria um precedente para que futuros presidentes manipulassem a Corte por motivos ideológicos.

"Quando a Comissão Judiciária do Senado votou contra a proposta, disse que essa era uma medida que deveria ser tão vigorosamente rejeitada que algo semelhante jamais voltaria a ser apresentado aos representantes do povo americano", salienta Friedman.

Ruth Bader Ginsburg morreu aos 87 anos de câncer no pâncreas
Ruth Bader Ginsburg morreu aos 87 anos de câncer no pâncreas
Foto: Reuters / BBC News Brasil

Mais de 80 anos depois, a ideia voltou à tona e continua provocando divisões. Muitos defensores argumentam que a atual composição da Suprema Corte não reflete a vontade do povo americano. Ressaltam que os últimos dois juízes a ingressar no tribunal — Neil Gorsuch e Brett Kavanaugh — foram nomeados por Trump, um presidente eleito mesmo sem ter conquistado a maioria do voto popular, e aprovados sob grande divisão no Congresso.

Outro argumento é o de que, caso Trump perca a eleição de novembro, ele entraria no período apelidado pelos americanos de "pato manco", quando um novo presidente já foi eleito, mas ainda não tomou posse. Ou seja, há a possibilidade de um presidente de saída da Casa Branca nomear um integrante que permanecerá na Suprema Corte por décadas.

Mas opositores da manobra dizem que é uma medida radical que afetaria a legitimidade da Suprema Corte e abriria caminho para que o partido no poder mude a composição do tribunal por motivos políticos.

O que diz Biden

O assunto não é unanimidade nem mesmo entre os democratas. Enquanto muitos na ala mais progressista do partido são favoráveis à mudança, outros são mais resistentes à manobra.

Nomes como a deputada Alexandria Ocasio-Cortez e o líder da minoria no Senado, Chuck Schumer, já disseram que todas as opções estão em aberto. Durante as primárias, 11 pré-candidatos democratas disseram estar abertos à discussão.

Desde que sua candidatura foi oficializada, Biden e sua vice, a senadora Kamala Harris, vinham evitado se posicionar sobre o assunto. No passado, Biden já manifestou oposição à ideia, advertindo que poderia não apenas se virar contra democratas quando os republicanos voltassem ao poder, mas também colocar em risco a credibilidade da Corte.

Segundo analistas, a reticência de Biden seria uma tentativa de evitar dar mais munição aos ataques de Trump, que diz que o Partido Democrata é dominado pela extrema esquerda. Pertencente à ala moderada do partido, Biden espera conquistar os votos de republicanos descontentes com Trump.

Mas nas últimas semanas, com a nomeação às pressas de Barrett, o candidato vem mudando de tom. Segundo trechos de uma entrevista que irá ao ar na rede CBS no próximo final de semana e que foram antecipados pela imprensa americana, Biden dirá que, se for eleito, poderá criar uma comissão bipartidária de especialistas para estudar a possibilidade de mudanças na Suprema Corte.

Com 48 anos de idade, Barrett é juíza de carreira
Com 48 anos de idade, Barrett é juíza de carreira
Foto: EPA/MATT CASHORE / UNIVERSITY OF NOTRE DAME LAW SC / BBC News Brasil

A própria Ruth Bader Ginsburg disse no ano passado, em entrevista à rádio pública NPR, que essa era uma "má ideia" já em 1937 e continuava sendo uma má ideia oito décadas depois, porque faria com que o tribunal parecesse partidário.

Para levar a mudança adiante, os democratas precisariam não apenas conquistar a Casa Branca, mas também o controle do Congresso. Enquanto as previsões são de que o partido mantenha a liderança da Câmara, ainda não se sabe qual será o resultado no Senado.

Corte mais politizada

Analistas observam que, de 1937 para cá, a nomeação de juízes para a Suprema Corte ficou mais ideológica.

"A Suprema Corte é mais politizada hoje do que era no passado", diz à BBC News Brasil o cientista político Todd Belt, professor da Universidade George Washington.

Belt ressalta que a Suprema Corte vem evitando decisões que sejam muito abertamente políticas, e lembra que o presidente do tribunal, o juiz John Roberts (nomeado pelo presidente republicano George W. Bush), tem se aliado à ala liberal em várias decisões, em um esforço para garantir a credibilidade da Corte.

"Roberts costuma dizer que não há (na Suprema Corte) juízes democratas ou republicanos, mas simplesmente juízes. Mas isso é menos verdade hoje (do que no passado). Uma das razões pelas quais Trump foi eleito foi a promessa aos eleitores evangélicos de que iria nomear juízes conservadores para a Suprema Corte", destaca Belt.

Friedman, da Universidade de Michigan, também ressalta que, diferentemente do que ocorria em 1937, atualmente as nomeações para a Suprema Corte são consideradas "oportunidades ideológicas".

"Espera-se que cada presidente aproveite a oportunidade. Se não fizer isso, os membros de seu partido ficarão muito descontentes", afirma Friedman.

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