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O Brasil na Índia e o triunfo do nacionalismo religioso

Bolsonaro e o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, estão em campanha aberta para redefinir, em seus países, a própria ideia de nação

26 jan 2020 - 14h30
(atualizado às 14h31)
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Em meio às crises e polêmicas que já se tornaram marca registrada do governo, a viagem de Jair Bolsonaro à Índia, iniciada na sexta-feira, passou praticamente em branco na imprensa ou nas redes sociais. Nos canais oficiais, tanto brasileiros quando indianos, a visita vem sendo promovida como parte dos esforços destes países para promover comércio e investimentos.

Jair Bolsonaro, presidente do Brasil, e Narendra Modi, primeiro-ministro da Índia, antes da reunião em Nova Délhi, Índia
Jair Bolsonaro, presidente do Brasil, e Narendra Modi, primeiro-ministro da Índia, antes da reunião em Nova Délhi, Índia
Foto: Altaf Hussain / Reuters

A dimensão econômica, claro, é parte importante dessa história. Mas ela reduz a centralidade de um aspecto simbólico e mais profundo da visita. Bolsonaro e o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, estão em campanha aberta para redefinir, em seus países, a própria ideia de nação. Ambos apostam no casamento entre nacionalismo e religião como elemento central de seus governos — e de sua legitimidade.

O nacionalismo religioso é uma das marcas da onda conservadora que vem ganhando tração ao redor do mundo. Sua principal característica é a sugestão de que o pleno pertencimento à sociedade depende, antes de tudo, da filiação a uma determinada fé ou sistema de crenças. Ao condicionar cidadania à religião, coloca em xeque o Estado laico, um dos pilares da vida política moderna. Representa, igualmente, uma enorme ameaça à democracia.

Líderes nacionalistas religiosos costumam se amparar na tese de que democracias são governos da maioria e para a maioria. Trata-se de uma falácia. Países democráticos são justamente aqueles cujos representantes, eleitos pela maior parcela da população, governam para todos os seus cidadãos.

Minorias, sejam elas étnicas, raciais, religiosas ou sexuais, devem ter seus direitos garantidos com base no princípio básico das liberdades civis - e não se "curvar às maiorias", como se diz por aí.

Vejamos o que acontece na Índia. Desde a chegada de Modi ao poder, em 2014, o governo do Partido do Povo Indiano (Bharatiya Janata) vem consolidando um projeto nacionalista hindu, cujo principal objetivo é isolar politicamente a minoria muçulmana do país. Nas impressionantes proporções indianas, 200 milhões de muçulmanos - um Brasil inteiro - correm o risco de perder, parcial ou totalmente, seu direito à cidadania.

Autoritarismo hindu

No início de seu segundo mandato, já não restam dúvidas sobre o caráter autoritário do nacionalismo hindu representado por Modi. A perseguição e a violência contra muçulmanos atingiram níveis alarmantes na maior democracia eleitoral do mundo. Neste ano, a comemoração do Dia da República, evento para o qual Jair Bolsonaro é convidado de honra, disputa espaço com uma onda de protestos por direitos civis ao redor da Índia.

Bolsonaro e Modi usam seu capital diplomático para construir uma frente global de nacionalistas religiosos. Para o Brasil, ela serve a dois principais propósitos. O primeiro é ampliar o arco de alianças em torno de um projeto conservador e populista comum, que hoje inclui Hungria, Polônia e Arábia Saudita. O governo brasileiro entendeu que é mau negócio depender de Donald Trump e de Binyamin Netanyahu, ambos fragilizados domesticamente e enfrentando eleições difíceis neste ano.

O segundo propósito é reforçar a base de Bolsonaro. A mensagem conservadora, moralista e patriótica do projeto nacionalista religioso é sedutora para diversos segmentos evangélicos e mesmo para um eleitorado católico mais difuso. Além disso, ela se encaixa perfeitamente no repertório da desvairada guerra cultural travada pelo governo.

Para Bolsonaro, o caminho das Índias pode também ser o caminho para um longo projeto de poder, cuja primeira parada será 2022. Não se pode negar o profundo componente estratégico dessa visita. Mais importante, contudo, é chamar atenção para os riscos de longo prazo que ela representa à própria ordem democrática e liberal pela qual devemos zelar.

*É PROFESSOR DA FGV-EAESP

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