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Nobel da Paz: um chocante relato de Denis Mukwege, médico que venceu prêmio por luta contra estupros em guerras

Mukwege atendeu mais de 30 mil mulheres vítimas de abuso sexual em conflitos na República Democrática do Congo. Ele montou um hospital com mais de 300 leitos, além de um sistema para financiar as mulheres a recomeçarem suas vidas. Chegou a sofrer um atentado, mas decidiu continuar a luta contra a violência sexual.

5 out 2018 - 09h09
(atualizado às 09h55)
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Duas pessoas que lutam contra o uso da violência sexual como arma de guerra foram premiadas, nesta sexta, com o Nobel da Paz 2018.

Uma delas é Nadia Murad, uma mulher que foi mantida como escrava sexual de militantes do Estado Islâmico em 2014. Depois de escapar, ela se tornou uma das principais vozes na luta pelo direito das mulheres.

A outra é o médico Denis Mukwege, que atendeu mais de 30 mil vítimas de abuso sexual com ferimentos graves na República Democrática do Congo. A guerra civil no país já deixou mais de 6 milhões de mortos, e milhares de mulheres vêm sendo submetidas a estupros.

Conhecido pela máxima de que a "justiça é responsabilidade de todos", Mukwege montou um hospital com 350 leitos financiado pela Unicef e outros doadores, além de uma unidade de atendimento móvel e um sistema para oferecer microcrédito para as vítimas reconstruírem sua vida.

Após o tratamento, mulheres e meninas estupradas recebem ajuda para voltar a trabalhar ou estudar.

Em um relato dramático, reproduzido abaixo, Mukwege contou à BBC News como os abusos sexuais se transformaram em uma potente e avassaladora arma de guerra no conflito:

Foto: BBC News Brasil

Início dos abusos

"Quando a guerra estourou, 35 pacientes de meu hospital, em Lemera, no leste do Congo, foram mortos em suas camas.

Fugi para Bukavu, a 100 km de Lemera, e comecei a atender (pacientes) em tendas. Construí uma maternidade e uma sala de cirurgia improvisada, mas em 1998 tudo foi destruído. Então, tive de recomeçar a erguer uma nova estrutura para atender meus pacientes em 1999.

Foi nesse ano que nossa primeira paciente vítima de estupro foi trazida para o hospital.

Depois que a paciente foi violentada, seus agressores atiraram nas suas coxas e órgãos genitais. Pensei que esse ato de barbárie seria algo isolado, uma atrocidade da guerra, mas o verdadeiro choque veio três meses depois.

Quarenta e cinco mulheres vieram se tratar conosco com a mesma história: combatentes haviam entrado em suas aldeias, estuprando e torturando quem encontrassem pelo caminho.

Algumas mulheres apresentavam queimaduras e relataram que, após terem sido estupradas, abrasivos químicos foram derramados em suas genitálias.

Estupro como 'estratégia'

Comecei a me perguntar o que estava acontecendo. Esses não eram só atos violentos de guerra. Eram parte de uma estratégia.

Em alguns casos que nos foram relatados, várias pessoas foram estupradas ao mesmo tempo, publicamente. A população feminina de aldeias inteiras sofreu abusos sexuais durante a noite.

O objetivo desses estupros coletivos era não só ferir as vítimas, mas toda a comunidade, já que todos eram forçados a assistir a tais atos.

Como resultado, as pessoas tiveram de fugir de suas aldeias, abandonar suas terras, seus recursos, tudo. Trata-se de uma estratégia eficaz nesse sentido.

O conflito do Congo não envolve grupos de fanáticos religiosos, nem é um conflito entre os Estados. É uma guerra motivada por interesses econômicos - e travada por meio de uma estratégia que está destruindo as mulheres do país.

Em 2011, assistimos a uma queda no número de estupros e pensamos que talvez a barbárie estivesse perto do fim.

Em 2012, porém, a guerra recomeçou e os casos de abuso sexual voltaram a aumentar. O fenômeno está totalmente ligado à situação de guerra.

Atendimento às vítimas

Estabelecemos um padrão de atendimento às vítimas. Antes de levá-las para a mesa de cirurgia fazemos um exame psicológico. Preciso saber se elas serão capazes de resistir à operação.

Após a etapa cirúrgica ou de cuidados médicos, encaminhamos as pacientes para um programa que lhes oferece apoio socioeconômico.

A maioria das vítimas chega aqui sem nada, nem roupas. Temos de alimentá-las e cuidar delas. Depois do fim do tratamento médico, se essas congolesas não forem capazes de se sustentar, estarão vulneráveis novamente.

Ajudamos as mulheres a desenvolver novas habilidades e as meninas a voltar para a escola.

A quarta etapa de nosso programa de auxílio às vítimas diz respeito a questões legais. Muitas vezes, os pacientes conhecem a identidade de seus agressores e temos advogados que os ajudam a tentar levar seus casos para a Justiça.

Ataque pessoal

Certo dia, (homens armados) entraram no meu carro, quando eu entrei na garagem de casa, apontando suas armas para mim. Eles me tiraram do veículo e, como um de meus seguranças tentou me resgatar, começaram a atirar e o mataram.

Eu me agachei e os homens continuaram disparando. Não sei como sobrevivi. Eles fugiram no meu carro sem levar nada e depois descobri que minhas duas filhas estavam em casa quando eles chegaram.

Elas foram levadas para a sala e ficaram esperando que eu chegasse junto com os agressores.

Durante todo o tempo, os homens ficaram com suas armas apontadas para minhas filhas. Foi terrível. Não sei quem eram essas pessoas nem por que me atacaram. Depois disso, fomos para a Suécia e, em seguida, para Bruxelas (Bélgica).

Em janeiro de 2013, decidi voltar para o Congo. O que me inspirou a retornar foi a determinação das mulheres congolesas no combate a essas atrocidades.

Muitas mulheres tiveram coragem para protestar contra o ataque à minha família para as autoridades.

Elas também juntaram dinheiro para pagar minha passagem de volta (ao país) - e essas são mulheres que não têm nada, vivem com menos de um dólar por dia.

Houve uma recepção para mim no aeroporto de Kavumu, em Bukavu, em janeiro. E, depois desses gestos, eu realmente não poderia dizer não.

Estou determinado a combater essas atrocidades, essa violência.

Minha vida teve de mudar, desde que voltei. Vivo no hospital agora e tomo uma série de precauções por questões de segurança. Perdi parte de minha liberdade.

As mulheres têm se revezado para vigiar o hospital. Grupos de 20 voluntárias fazem turnos, dia e noite, para tentar garantir minha segurança.

E elas não têm armas, não têm nada. Seu entusiasmo me dá confiança para continuar a trabalhar."

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