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Forças de segurança matam mais de 100 manifestantes contrários ao golpe militar em Mianmar

Mais de 350 pessoas foram mortas na repressão aos protestos desde que os militares tomaram o poder em fevereiro.

27 mar 2021 - 10h07
(atualizado às 22h31)
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Manifestantes protestam contra golpe militar em Mianmar
Manifestantes protestam contra golpe militar em Mianmar
Foto: Reuters / BBC News Brasil

As forças de segurança de Mianmar abriram novamente fogo contra manifestantes que criticavam o recente Golpe de Estado no país, deixando mais de 100 mortos, segundo testemunhas e notícias de veículos locais. O massacre ocorreu enquanto líderes da deposição celebravam o Dia das Forças Armadas.

O líder golpista, Min Aung Hlaing, disse nesse sábado (27/3) em discurso transmitido em cadeia nacional que iria "proteger a democracia". Ele prometeu a realização de eleições, mas não estabeleceu um calendário para que isso ocorra.

Mais de 350 pessoas foram mortas na repressão aos protestos desde que os militares tomaram o poder em fevereiro.

Nesta sexta (26/3), a TV estatal de Mianmar emitiu um alerta em uma transmissão nacional afirmando que as pessoas "deveriam aprender com a tragédia de mortes horríveis que ocorreram que você (manifestante) corre o risco de levar um tiro na cabeça e nas costas".

As grandes manifestações mais recentes ocorreram em ruas de Yangon, maior cidade do país com 7 milhões de habitantes, e outras localidades espalhadas pelo país.

Ativistas anti-golpe convocaram os atos apesar da ameaça dos militares de usar força letal contra eles. As forças de segurança atuaram com violência, tentando evitar comícios, principalmente em Yangon.

Há informações incompletas sobre o número de mortos neste sábado. O site de notícias The Irrawaddy disse que 59 pessoas, incluindo três crianças, foram mortas em 28 locais.

O Myanmar Now publicou que pelo menos 50 pessoas morreram em uma das regiões do país, incluindo quatro do lado de fora de uma delegacia de polícia no subúrbio de Dala, em Yangon.

A agência de notícias Reuters fala em mais de 90 mortos, citando testemunhas e veículos locais.

Mortes também foram relatadas nas ruas da segunda maior cidade de Mandalay, enquanto os manifestantes carregavam a bandeira da Liga Nacional para a Democracia (NLD), o partido da líder civil deposta em Mianmar, Aung San Suu Kyi. Ela e outros integrantes do governo derrubado continuam presos.

"Eles estão nos matando como passarinhos ou galinhas, até mesmo em nossas casas", disse Thu Ya Zaw à Reuters. Ele mora na cidade central de Myingyan, onde pelo menos dois manifestantes foram mortos. "Continuaremos protestando apesar de tudo... Devemos lutar até a queda da junta militar."

Mais de 320 pessoas já foram mortas em protestos contra o golpe militar
Mais de 320 pessoas já foram mortas em protestos contra o golpe militar
Foto: Reuters / BBC News Brasil

Um jornalista disse à agência de notícias AFP ter visto a polícia usar munição de verdade contra manifestantes na cidade de Lashio, no nordeste do país. Há relatos de um bebê de um ano atingido no olho por uma bala de borracha.

Sasa, porta-voz do grupo anti-junta militar CRPH, disse à Reuters: "Hoje é um dia de vergonha para as Forças Armadas. Os generais militares estão comemorando o Dia das Forças Armadas depois de terem matado mais de 300 civis inocentes".

Em meio ao avanço da violência, um dos 20 grupos étnicos armados de Mianmar, a União Nacional Karen, afirmou ter invadido um posto do Exército perto da fronteira com a Tailândia, matando 10 pessoas.

As facções armadas étnicas de Mianmar dizem que não ficarão paradas em meio ao golpe e que não permitirão mais mortes de manifestantes, disse neste sábado o líder de um dos principais grupos armados.

Min Aung Hlaing liderou golpe que tirou do poder líderes eleitos democraticamente
Min Aung Hlaing liderou golpe que tirou do poder líderes eleitos democraticamente
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

O governo também tem cortado o acesso à internet, censurado veículos de comunicação e bloqueado redes sociais para tentar conter os protestos contra o golpe, que tem ganhado força entre estudantes, funcionários públicos, sindicatos e categorias profissionais organizadas.

"Ouvi histórias de pessoas que foram presas e pareciam ter sido torturadas, outras que receberam os corpos de seus parentes com órgãos faltando. Familiares meus estão na cadeia, pessoas que eu conheço foram mortas. Eu não quero virar mártir, eu quero poder usufruir da democracia em Mianmar quando enfim conseguirmos restabelecê-la", relatou Aye Min Thant, jornalista que recebeu o Prêmio Pulitzer em 2019, em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo.

O que disse o líder golpista sobre a morte de manifestantes?

"O Exército busca dar as mãos a toda a nação para proteger a democracia", disse Min Aung Hlaing em sua transmissão ao vivo no sábado. "Atos violentos que afetam a estabilidade e a segurança para fazer exigências são inadequados."

Ele acrescentou que o Exército teve que tomar o poder por causa de supostos "atos ilegais" de líderes do partido vencedor da eleição, liderado por Suu Kyi.

O líder do golpe não disse especificamente que os militares receberam ordens de atirar para matar. Há poucos dias, a junta militar que comanda o país acusou, sem provas, os manifestantes de terem efetuado os disparos que deixaram centenas de mortos.

O Dia das Forças Armadas celebra o início da resistência militar de Mianmar contra a invasão japonesa em 1945.

O desfile é geralmente assistido por autoridades de outras nações. O vice-ministro da Defesa russo, Alexander Formin, parecia ser o único oficial estrangeiro ali. "A Rússia é uma verdadeira amiga", disse Min Aung Hlaing.

Os Estados Unidos, a União Europeia e o Reino Unido impuseram sanções em resposta ao golpe militar. Enquanto isso, os laços militares de Mianmar e da Rússia aumentaram nos últimos anos. Moscou tem fornecido treinamento a milhares de soldados e vendeu armamento aos militares.

"O estado falido em Mianmar tem o potencial de arrastar todas as grandes potências — incluindo EUA, China, Índia, Rússia e Japão — de uma forma que pode levar a uma grave crise internacional (bem como a uma catástrofe ainda maior para a própria Mianmar)", escreveu no Twitter o historiador Thant Myint-U.

Especialistas disseram à BBC que há uma grande movimentação para aumentar as sanções — no momento certo. "O mundo ainda está esperando para ver como isso vai se desenrolar", disse George McLeod, diretor-gerente da Access Asia, uma empresa de gerenciamento de risco especializada na região. "Pelo que ouvi de pessoas de lá, a Noruega está tentando chegar a uma solução negociada."

O que antecedeu o golpe em Mianmar?

O golpe militar em fevereiro deste ano espalhou medo por todo o país, que suportou quase 50 anos de governos militares opressores antes da mudança para um governo democrático em 2011.

As prisões de Aung San Suu Kyi, vencedora do Prêmio Nobel da Paz, e de outros políticos trouxeram de volta dias que muitos esperavam ter deixado para trás.

Nos últimos cinco anos, ela e seu partido lideraram o país depois de ser eleito em 2015 na votação mais livre e justa em 25 anos. No primeiro dia de fevereiro, o partido deveria iniciar seu segundo mandato, consagrando o resultado das eleições de novembro de 2020, mas não foi isso que ocorreu.

Nas eleições, o NLD conquistou mais de 80% dos votos, permanecendo imensamente popular mesmo diante das acusações de genocídio contra os muçulmanos rohingya do país.

A oposição, apoiada pelos militares, imediatamente começou a fazer acusações de fraude após a votação. A alegação sem provas foi repetida em um comunicado assinado e divulgado como justificativa para imposição de um estado de emergência por um ano.

Uma grande lacuna para explicar o golpe de Estado é que os militares não perderam poder na eleição, já que eles ainda têm grande influência sobre o governo, graças à controversa Constituição de 2008, que garante um quarto de todas as cadeiras no Parlamento e o controle dos ministérios mais poderosos do país (Interior, Defesa e Fronteiras).

Junta militar acusava, sem provas, os manifestantes de serem responsáveis pelas centenas de mortes em seus próprios atos contra o golpe
Junta militar acusava, sem provas, os manifestantes de serem responsáveis pelas centenas de mortes em seus próprios atos contra o golpe
Foto: Reuters / BBC News Brasil

Para Aye Min Thant, existe a hipótese de que pode haver outro motivo para o golpe: constrangimento por parte dos militares. "Eles não esperavam perder (a eleição)", disse ela à BBC.

"Você precisa entender como o Exército vê sua posição no país", acrescenta Aye Min Thant. "A mídia internacional costuma se referir a Aung San Suu Kyi como 'mãe' do país. O Exército se considera o 'pai' da nação." Como resultado, sente que tem "obrigação e direito" de governar — e nos últimos anos, à medida que o país se tornou mais aberto ao comércio internacional, não gostou do que viu. "Eles veem os estrangeiros especialmente como um perigo."

Não está claro também o que os militares têm a ganhar com o golpe.

"Tomar o poder por um ano, conforme anunciado, isolará parceiros internacionais não chineses, prejudicará os interesses comerciais dos militares e provocará uma escalada de resistência de milhões de pessoas que deram a Suu Kyi e o NLD no poder outro mandato para governar", disse Gerard McCarthy, que faz pós-doutorado no Instituto de Pesquisa da Ásia da Universidade Nacional de Cingapura, à BBC.

Suu Kyi e os militares

Suu Kyi é filha do herói da independência de Mianmar, o general Aung San, assassinado quando ela tinha apenas dois anos de idade.

Após períodos vivendo na Índia, Japão, Butão e Inglaterra, ela voltou ao país natal em 1988, ano turbulento na história de Mianmar.

Aung San Suu Kyi ainda é uma líder bastante popular em seu país
Aung San Suu Kyi ainda é uma líder bastante popular em seu país
Foto: AFP / BBC News Brasil

Milhares de estudantes, trabalhadores e monges saíam às ruas para pedir reformas democráticas. E Suu Kyi foi rapidamente alçada à categoria de líder de uma revolta contra o então ditador general Ne Win.

Inspirada pelas campanhas dos líderes de defesa dos direitos civis Martin Luther King, nos EUA, e Mahatma Gandhi, na Índia, ela organizou comícios e viajou pelo país, pedindo reforma democrática pacífica e eleições livres.

Mas as manifestações foram brutalmente reprimidas pelo Exército, que tomou o poder em um golpe no dia 18 de setembro de 1988.

O governo militar convocou eleições nacionais em 1990, e o partido de Suu Kyi venceu o pleito, apesar de ela estar sob prisão domiciliar e de ter sido impedida de participar da votação.

Mas a junta se recusou a entregar o poder, e permanece no controle do país desde então.

Suu Kyi ficou presa entre 1989 e 1995. Durante o período em que esteve presa, participou de reuniões secretas com o governo militar e abriu caminho para o diálogo entre as autoridades e a oposição.

Em 2015, com a vitória de seu partido nas eleições gerais, ela se tornou a figura mais poderosa do governo, o que teria ampliado divergências com os militares de forma crescente desde então e encontra ecos no golpe de 2021. Isso porque Suu Kyi é proibida pela Constituição a impede de se tornar presidente por ter filhos estrangeiros, mas a partir de 2015 passou a ocupar os cargos de 1ª Conselheira de Estado e chanceler do governo, se tornando a líder de facto do país, ainda que não exercesse controle sobre o comando militar.

Nos últimos anos, sua liderança foi abalada no cenário internacional pelo tratamento à minoria muçulmana Rohingya.

Em 2017, milhares de Rohingya fugiram para Bangladesh, país vizinho, devido à repressão do Exército provocada por ataques mortais a delegacias de polícia no Estado de Rakhine.

Os ex-apoiadores internacionais de Suu Kyi a acusaram de não fazer nada para impedir o estupro, assassinato e possível genocídio ao se recusar a condenar os militares ou reconhecer os relatos de atrocidades. Perante o Tribunal Internacional de Justiça, instância da Organização das Nações Unidas (ONU), ela negou publicamente as acusações de limpeza étnica contra a minoria muçulmana rohingya.

Para alguns analistas, a ofensiva nacionalista de Suu Kyi em defesa do país ante as críticas internacionais ampliaram sua popularidade para na eleição geral em novembro de 2020.

Dentro do país, no entanto, "a Lady", como Suu Kyi é conhecida, continua bastante popular entre a maioria budista que tem pouca simpatia pelos Rohingya.

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