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'Meu marido foi espancado e morto por me amar'

Kausalya desafiou costumes indianos ao se casar com um homem de casta inferior, mas foi punida pelos próprios pais; hoje, ela luta contra a discriminação de castas na Índia.

28 jan 2018 - 22h39
(atualizado em 29/1/2018 às 08h54)
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Em março de 2016, um homem de 22 anos foi golpeado até a morte em plena luz do dia, em uma estrada movimentada no sul da Índia. O motivo: havia se casado com uma mulher de uma casta - ou grupo social - superior.

A mulher estava com ele no momento do ataque e sobreviveu.

Kausalya e o marido, que pertencia a uma casta considerada inferior na Índia, se apaixonaram na faculdade. Ele acabou assassinado por ordem do pai dela | Foto: Nathan G
Kausalya e o marido, que pertencia a uma casta considerada inferior na Índia, se apaixonaram na faculdade. Ele acabou assassinado por ordem do pai dela | Foto: Nathan G
Foto: BBC News Brasil

Ela acusou os pais pelo crime e passou a lutar contra o sistema de castas e as divisões que ele causa - famílias de casta mais altas muitas vezes não admitem que seus filhos se casem com pessoas de castas inferiores.

No caso de Shankar e Kausalya, a união ocorreu oito meses antes de ele ser morto.

Em seu último dia de vida, um domingo, Shankar e a mulher acordaram por volta das 9h da manhã e tomaram um ônibus até um mercado na cidade de Udumalpet, para comprar roupas novas para um compromisso que ele teria na faculdade no dia seguinte.

Assassinato

Após o passeio, Shankar quis oferecer um lanche a Kausalya, mas, como estavam com pouco dinheiro - o equivalente a R$ 3 -, decidiram deixar para outro dia. Ele cozinharia um prato especial para ela quando chegassem em casa.

Só que isso nunca aconteceu.

Imagens de uma câmera de vigilância mostram os dois caminhando em direção à estrada onde pegariam o ônibus de volta. Antes que pudessem cruzá-la, no entanto, foram abordados por cinco homens que chegaram de moto.

Quatro deles atacaram o casal com facões. Golpearam marido e mulher.

Imagens de câmeras de vigilância mostram comoção causada pelo ataque a Kausalya e o marido
Imagens de câmeras de vigilância mostram comoção causada pelo ataque a Kausalya e o marido
Foto: BBC News Brasil

Sangrando muito, Shankar lutou para escapar. Kausalya cambaleava em direção a um veículo estacionado nas proximidades, quando foi abatida mais uma vez pelos agressores. Tudo acabou em 36 segundos.

Os homens voltaram para as motocicletas e partiram quando uma multidão começou a se aglomerar. A polícia confirmou depois que o bando era formado por seis homens, em três motocicletas, duas delas com placas falsificadas.

Cinco deles atacaram o casal, enquanto o sexto observava.

Uma ambulância chegou rápido ao local e tirou marido e mulher da pista ensanguentada. A caminho do hospital, na maca, Kausalya segurava a medicação que recebia na veia. Shankar estava quieto.

"Deite a cabeça no meu peito", disse ele. A mulher passou para o lado dele.

Minutos depois, quando a ambulância entrou no hospital, ele parou de respirar.

A autópsia identificou 34 cortes e ferimentos em seu corpo "moderadamente nutrido". Shankar morreu de "choque e hemorragia devido a cortes múltiplos e lesões provocadas pelas punhaladas".

Kausalya passou 20 dias no hospital, com o rosto envolto em ataduras, esperando 36 pontos cicatrizarem e uma fratura óssea ser corrigida. Da cama do hospital, ela disse à polícia que seus pais eram responsáveis pelo ataque.

"Por que você o ama?", gritava um dos agressores enquanto a esfaqueava. "Por quê?"

Shankar e Kausalya haviam quebrado o que a escritora Arundhati Roy descreveu como "Leis do Amor", que "estabelecem quem deve ser amado, como e quanto", em seu premiado romance O Deus das Pequenas Coisas.

Foto de Kausalya ensanguentada e enfaixada na cama do hospital viralizou na Índia
Foto de Kausalya ensanguentada e enfaixada na cama do hospital viralizou na Índia
Foto: BBC News Brasil

Shankar era um Dalit (antigamente conhecidos como intocáveis), filho de um trabalhador sem-terra que recebia por diárias em uma fazenda e morava em uma cabana de apenas um cômodo com quatro membros da família, na aldeia de Kumaralingam.

Kausalya, por sua vez, era de uma casta relativamente influente de Thevar. Ela é filha de um taxista de 38 anos, que morava em uma casa de dois andares na pequena cidade de Palani.

Quando ela disse aos pais que queria se tornar comissária de bordo, eles rejeitaram a ideia porque "ela teria que usar saias curtas".

Depois que ela concluiu os estudos, em 2014, eles a levaram a um templo familiar para conhecer homens com quem queriam que se casasse. Diante da recusa, eles a enviaram a uma faculdade privada para estudar ciências da computação e engenharia. Ela odiava a faculdade.

"Havia muitas restrições. Não podíamos sequer tentar sair do campus. Não podíamos conversar com os rapazes. Homens e mulheres se sentavam separadamente na sala de aula. No ônibus da faculdade, sentávamos em áreas diferentes. Se o segurança nos visse falando com os rapazes, informava nossos pais. Era muito sufocante", relembra.

'Amigos respeitosos'

Mas o amor pode acontecer até nos lugares mais impróvaveis.

Na faculdade, um calouro alto e magro, do curso de engenharia, caminhou até ela, se apresentou como Shankar e perguntou: "Você está apaixonada por alguém?"

Kausalya diz que não respondeu e se afastou, envergonhada.

No dia seguinte, Shankar insistiu com a pergunta: "Você está apaixonada por alguém? Porque acho que amo você". Ela se afastou de novo.

No terceiro dia, quando a abordou novamente, ela disse que "procurasse outra garota". Mas começou a se afeiçoar a ele.

Eles passaram a se comportar como "amigos respeitosos". "Com o tempo, aquele sentimento foi crescendo em mim."

Uma selfie tirada com o marido é o papel de parede do celular de Kausalya | Foto: Nathan G
Uma selfie tirada com o marido é o papel de parede do celular de Kausalya | Foto: Nathan G
Foto: BBC News Brasil

Era um amor difícil. Como ela não podia sair de casa sozinha para falar ao telefone, eles trocavam mensagens de WhatsApp nos passeios de ônibus da faculdade.

Eles trocaram mensagens diariamente durante 18 meses. Falavam sobre suas esperanças e sonhos.

"Eu tenho dois sonhos", escreveu ele um dia. "Construir uma casa adequada para minha família e amar você para sempre."

Em seu segundo ano, ela se inscreveu em aulas de língua japonesa, para poder ficar além dos horários da faculdade. Shankar a esperaria, e eles poderiam conversar no caminho de volta para casa.

Mas certo dia, em julho de 2015, o condutor do ônibus os viu conversando, descobriu onde Kausalya vivia e contou o episódio à mãe dela. Na mesma noite, seus pais tomaram seu telefone, ligaram para Shankar e disseram a ele que mantivesse distância de sua filha.

Eles disseram a Kausalya que Shankar a engravidaria e fugiria. No dia seguinte, a tiraram da faculdade.

Ela chorou a noite inteira e acordou na manhã seguinte com a casa vazia - seus pais haviam saído. Ela procurou o telefone, o encontrou e ligou para contar a Shankar sobre a briga com seus pais. Perguntou então se ele planejava engravidá-la e fugir.

"Se você está preocupada com isso, podemos fugir agora e casar", disse ele.

Kausalya pegou suas coisas e saiu de casa. No dia seguinte, 12 de julho de 2015, ela foi ao templo com Shankar e eles casaram. Em seguida, foram à delegacia de polícia local, informaram às autoridades sobre seu casamento entre castas e pediram proteção.

Dalits e membros de tribos sofrem com o peso da brutalidade de castas no Estado de Tamil Nadu, na Índia, onde mais de 1.700 crimes do tipo foram denunciados apenas naquele ano.

A mãe e o pai de Kausalya: O pai foi condenado à morte e a mãe, absolvida | Foto: The News Minute
A mãe e o pai de Kausalya: O pai foi condenado à morte e a mãe, absolvida | Foto: The News Minute
Foto: BBC News Brasil

Os oito meses seguintes, diz Kausalya, foram "o período mais livre e feliz" de sua vida. Ela se mudou para a casa de Shankar - com o pai, os dois irmãos e a avó dele -, saiu da faculdade e começou a trabalhar como vendedora.

Seus pais e parentes se esforçaram para separá-los: prestaram queixa na polícia dizendo que Shankar havia sequestrado sua filha e, uma semana depois do casamento, a raptaram e a levaram a xamãs e sacerdotes que espalhavam cinzas em seu rosto e a alimentavam à força com poções, pressionando-a a deixar o marido.

Eles finalmente desistiram e Shankar a levou para casa. Os pais dela chegaram a oferecer uma recompensa financeira para que ele a abandonasse.

Kausalya conta que, uma semana antes do assassinato, seus pais visitaram sua casa e ordenaram que ela fosse embora com eles, o que ela se recusou a fazer.

'Nós não somos responsáveis'

"Se alguma coisa lhe acontecer a partir de hoje, não seremos responsáveis", disse seu pai, antes de sair.

A polícia descobriu que o pai de Kausalya havia contratado cinco homens com antecedentes criminais para matar a filha e o genro e assim "enviar uma mensagem pública" sobre o que acontece quando uma mulher se apaixona por um homem de casta inferior.

O assassinato teve 120 testemunhas, e os pais de Kausalya foram presos. Ela mesma contestou a fiança do casal 58 vezes no tribunal.

"Minha mãe ameaçou repetidamente me matar. Ela me disse que era melhor eu estar morta do que casada com ele", disse ao juiz.

Após a morte do marido, Kausalya aprendeu a tocar um instrumento típico dos Dalits | Foto: Nathan G
Após a morte do marido, Kausalya aprendeu a tocar um instrumento típico dos Dalits | Foto: Nathan G
Foto: BBC News Brasil

Em dezembro, o juiz Alamelu Natarajan condenou seis homens à morte, incluindo o pai da jovem. Sua mãe e mais duas pessoas foram absolvidas. Kausalya pretende, no entanto, apelar contra a absolvição, pois acredita que a mãe é igualmente culpada.

Em luto pela morte do marido, ela diz que chegou a pensar em suicídio, mas decidiu encampar uma luta contra o sistema de castas. Passou a ler livros sobre o tema, cortou os cabelos e começou a aprender karatê.

Em seguida, Kausalya começou a se reunir com grupos anticasta e a denunciar crimes relacionados. Também aprendeu a tocar o parai, um tambor tradicionalmente tocado por Dalits.

Recentemente, ela realizou o sonho de Shankar: construiu uma casa de quatro cômodos para sua família - a partir da indenização que recebeu do governo - e inaugurou um centro de ensino para estudantes pobres da aldeia.

Para sustentar a família, assumiu um cargo de funcionária pública.

Nos fins de semana, viaja por Tamil Nadu para discursar em encontros contra castas e os chamados assassinatos de honra, enfatizando a "importância do amor".

"O amor é como a água, é uma coisa natural. O amor acontece. As mulheres têm que se revoltar contra o sistema de castas", diz.

Muitos são contra sua campanha e publicam ameaças de morte em seu perfil no Facebook. Hoje, ela é protegida pela polícia.

Depois que Shankar morreu, os médicos a devolveram seu telefone - que guarda as boas lembranças do período de namoro.

"Eu não sei o que dizer, mas sinto sua falta", disse Shankar em uma mensagem a ela em uma noite de verão, em 2015.

"Eu também", ela respondeu.

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