PUBLICIDADE

Mundo

A Escola de Direito de fachada que formava os doutores da temida polícia secreta da Alemanha Oriental

A polícia secreta da Alemanha Oriental teve uma instituição de ensino superior para treinar agentes em técnicas de vigilância. Após a reunificação alemã, os ex-alunos mantiveram seus títulos.

23 mai 2020 - 12h47
(atualizado às 13h02)
Compartilhar
Exibir comentários
A Stasi atuava como a polícia secreta da Alemanha Oriental
A Stasi atuava como a polícia secreta da Alemanha Oriental
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Desde a sua criação na então Alemanha Oriental, em 1950, o Ministério para Segurança Estatal (Stasi) atuou para manter o Partido Socialista Unificado da Alemanha (SED) no poder. E os esforços da polícia secreta nesse sentido incluíram até uma Escola Superior de ensino em Potsdam, cidade próxima a Berlim, para treinar parte de seus funcionários.

Cerca de 30 mil funcionários da Stasi passaram pela Academia de Direito em Potsdam (e outras instituições afiliadas). O nome, usado a partir de 1965, servia como uma fachada, pois o currículo jurídico era limitado e o foco era o treinamento ideológico em marxismo-leninismo e técnicas operacionais/vigilância para chefes de unidades da polícia secreta.

Ainda assim, a escola formou mais de 400 doutores e milhares de graduados com título de Diplom-Jurist, algo como um diploma de advogado.

"O uso de títulos acadêmicos era uma mistura de camuflagem e uma tendência a fingir padrões acadêmicos elevados, os quais a Stasi nunca conseguiu atender devido ao nível bastante baixo de educação entre os oficiais e sua postura deliberadamente anti-intelectual", diz à BBC News Brasil Jens Gieseke, chefe do departamento de Comunismo e Sociedade no Centro Leibniz para História Contemporânea, em Potsdam.

Os alunos da Academia de Direito eram parte de um dos aparatos de vigilância mais sofisticados da história, usado pela Stasi durante 40 anos para controlar todos os aspectos da sociedade alemã oriental e seus cidadãos.

Algumas de suas dissertações ainda geram polêmica na Alemanha, pois retratavam técnicas de interrogatório a opositores e formas de derrubar dissidentes.

"Funcionários em nível mais alto terminavam seus estudos com teses de doutorado principalmente ligadas à ideologia e liderança. Aqueles em nível mais baixo, que iriam às administrações distritais da Stasi, obtinham apenas um diploma e estudavam operações concretas, como técnicas de vigilância, de distração e para destruir grupos de oposição", explica o historiador Arnd Bauerkämper, da Universidade Livre de Berlim.

Quando a Stasi foi dissolvida, em 1990, ela tinha 91 mil empregados e 189 mil colaboradores não oficiais - em grande parte, civis recrutados para espionar colegas de trabalho, amigos e familiares.

Naquele ano, com a reunificação da Alemanha, os diplomas da Academia da Stasi foram reconhecidos e os títulos de doutorado mantidos (e usados até hoje, embora muitos ex-membros da Stasi estejam aposentados). Não foi permitido, contudo, que ex-estudantes com o Diplom-Jurist atuassem como advogados, pois os seus diplomas não equivaliam ao de um curso de Direito.

"Alguns dos oficiais com tais diplomas conseguiram ser admitidos como advogados antes da entrada em vigor do tratado", diz Gieseke.

Corredores do centro de detenção da Stasi: órgão era o mais temido da Alemanha Oriental
Corredores do centro de detenção da Stasi: órgão era o mais temido da Alemanha Oriental
Foto: BBC News Brasil

Qualidade questionável

Estudiosos da Stasi encontraram em registros diversas práticas questionáveis nos diplomas da Academia. Há, por exemplo, 174 teses de doutorado com 485 autores diferentes. Ou seja, diversos destes trabalhos foram assinados por mais de uma pessoa. O que, normalmente, não é permitido no mundo acadêmico.

As teses foram mantidas em sigilo até o colapso do regime. E os seus padrões acadêmicos eram considerados baixos, com inúmeras dissertações tendo apenas algumas páginas. Para Bauerkämper, o sigilo, em especial nas teses de doutorado, contraria o pressuposto acadêmico da abertura, discussão de descobertas e verificação.

"Um dos princípios acadêmicos é a clara prestação de contas. Os autores do trabalho precisam ser claramente identificados para que possam ser responsabilizados e verificados por outras pessoas", defende o historiador.

A maioria das dissertações da escola da Stasi também não tratava de questões teóricas ou acadêmicas. Por outro lado, como foram escritas com base no trabalho operacional de oficiais/estudantes elas fornecem "informações interessantes sobre as práticas cotidianas" da polícia secreta, acredita Gieseke. "Apesar do nome oficial 'Academia de Direito', os padrões podem ser comparados a uma academia policial ou militar de outros países."

É muito improvável, segundo Bauerkämper, que algum doutor da escola da Stasi tenha conseguido manter uma carreira na academia da Alemanha unificada, pois não poderiam esconder a origem de seus diplomas. "No entanto, no caso de doutorado, geralmente não é possível reconhecer que é um diploma da Stasi. E, é claro, os ex-oficiais fazem muito para camuflar a origem de seu título, renomeando-o como um diploma civil da Universidade de Potsdam, por exemplo (o que é bastante espúrio, pois a universidade de Potsdam foi fundada somente após 1990)", completa Gieseke.

Muro de Berlim em 1986: comunista Alemanha Oriental tratava como criminosos aqueles que tentavam fugir para a capitalista Alemanha Ocidental
Muro de Berlim em 1986: comunista Alemanha Oriental tratava como criminosos aqueles que tentavam fugir para a capitalista Alemanha Ocidental
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Mudança de nome

Comissário Federal para os arquivos da Stasi, Roland Jahn defendeu há poucos meses que os ex-alunos da Academia não pudessem mais usar seus títulos de doutor. Segundo o ex-opositor do regime alemão oriental, o termo deveria ser substituído por "Doutor da Stasi".

Esse debate esteve presente no período da reunificação, mas optou-se por não adotar o modelo para não estigmatizar os ex-estudantes. "Teria feito sentido privar os ex-oficiais de seus títulos de doutorado no início dos anos 90. Atualmente, a proposta não faria muito sentido, pois muito poucos ainda estão ativos na vida profissional", diz Gieseke.

A mudança do termo seria procedente, de acordo com Bauerkämper, porque tratava-se de uma "educação altamente ideológica". "O trabalho dessas pessoas era estabilizar a ditadura do SED. E se você pensar na perspectiva das vítimas, seria justificado."

A Academia de Direito da Stasi foi dissolvida em novembro de 1989. Mas, para Gieseke, os expurgos de ex-oficiais da polícia secreta da vida pública da Alemanha unificada tiveram um resultado misto. "Foi possível mantê-los afastados de qualquer posição de alto escalão no serviço público ou nas forças armadas. Mas, em certa medida, eles conseguiram continuar suas carreiras no setor privado, por exemplo, como advogados, agentes imobiliários ou investigadores particulares. E para essas carreiras, usaram seus diplomas ou títulos de doutorado."

BBC News Brasil BBC News Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização escrita da BBC News Brasil.
Compartilhar
Publicidade
Publicidade