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Mitos da Educação: cobrança de mensalidade não é solução para financiar universidades federais

A ideia de que a grande maioria dos estudantes das universidades federais são egressos de classes sociais mais abastadas é falsa

28 ago 2024 - 11h35
(atualizado às 12h43)
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Foto: Pedro Kirilos/Estadão / Estadão

Ao longo do tempo, por diversas razões, em geral relacionadas à disputa pela destinação dos recursos financeiros disponíveis para desenvolver ações que projetem um futuro brasileiro menos desigual, análises e conclusões superficiais sobre a educação no Brasil foram se cristalizando na sociedade. Na série de artigos "Mitos da educação", o mestre em Física e doutor em Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP) Nelson Cardoso Amaral examina em profundidade algumas dessas crenças equivocadas sobre setor. Abaixo, no quinto artigo da série, Nelson aborda os mitos de que cobrar mensalidades dos estudantes resolveria as dificuldades financeiras das universidades federais, desafogaria o orçamento da educação pública brasileira e ainda por cima não prejudicaria a vida dos alunos dessas instituições, pois eles em sua maioria seriam egressos de escolas particulares e filhos de famílias abastadas da classe média.

Quando se discute sobre o financiamento das universidades federais brasileiras e, em especial, nos momentos em que elas estão subfinanciadas com relação às despesas de manutenção e desenvolvimento, surge a afirmação de que a solução para esse problemas seria a cobrança de mensalidades dos estudantes.

Esta afirmação se sustenta em dois mitos que permanecem ao longo do tempo. O primeiro deles é o de que a grande maioria dos estudantes das universidades federais são egressos de classes sociais mais abastadas, tendo frequentado o ensino médio em escolas privadas. E que, portanto, poderiam continuar pagando mensalidades, como faziam antes.

A ideia acima já era equivocada no passado, e torna-se ainda mais errada nos tempos atuais. A Associação Nacional de Dirigentes de Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES) realizou nos últimos 20 anos cinco pesquisas sobre o perfil socioeconômico e cultural dos estudantes das Universidades Federais (UFs). Elas foram feitas em 1996, 2003, 2010, 2014 e 2018. Ao serem perguntados se realizaram o ensino médio nos setores público ou privado, a resposta dos estudantes na pesquisa mais atual, de 2018, foi a de que 64,7% o fizeram nas escolas públicas e 35,3% nas escolas privadas. Mesmo em 1996, esses percentuais eram de 45,0% nas públicas e 55,0% nas privadas, o que também não confirma o mito de que a grande maioria dos estudantes das UFs frequentou o ensino médio em escolas privadas.

O segundo mito é o de que os estudantes de famílias mais ricas são os que frequentam as UFs. A pesquisa de 2018 também mostrou que esta afirmação não é verdadeira. O percentual dos estudantes com renda mensal de até 1 e ½ salário-mínimo por pessoa da família, a chamada renda per capita, é de um valor muito elevado, 70,2%, lembrando que esse percentual na pesquisa realizada em 1996 esse percentual era de 44,3%.

Note-se que mesmo em 1996, já era grande o número de estudantes que pertenciam a esse estrato mais baixo de renda. Esse limite de renda per capita, de até 1 e ½ salário-mínimo por pessoa da família, é o mesmo utilizado pelo Programa Universidade para Todos (Prouni) para possibilitar a obtenção de uma bolsa integral em instituições privadas e, são portanto, famílias que não poderiam pagar mensalidades para seus filhos e filhas.

A pesquisa de 2018 chama ainda a atenção pelo fato de que 26,6% dos estudantes com o benefício vêm de famílias cuja renda mensal é de até meio salário mínimo por pessoa. É inegável que estudantes com esse perfil sócioeconômico necessitam de moradia, alimentação e algum tipo de bolsa para permanecerem frequentando seus cursos de graduação até a conclusão.

Pode-se creditar essa mudança de perfil dos estudantes - tanto na origem, se de escolas públicas ou privadas, quanto no perfil de renda - à aprovação da Lei 12.711 de 29/08/2012, a chamada Lei de Cotas, que estabeleceu:

"As instituições federais de educação superior vinculadas ao Ministério da Educação reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de graduação, por curso e turno, no mínimo 50% de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas" e ainda que "No preenchimento das vagas de que trata o caput deste artigo, 50% deverão ser reservados aos estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo (um salário-mínimo e meio) per capita" .

Deve-se registrar que o perfil dos estudantes das UFs mostrado na pesquisa Andifes de 2018 ainda não reflete o perfil socioeconômico da população brasileira. A tabela que segue mostra, por classe de rendimento mensal total familiar, o percentual da população brasileira e o percentual dos estudantes das UFs na pesquisa de 2018. Os dados da população brasileira são da PNAD 2015, tabelas 6.1 e 7.3.

É flagrante a assimetria existente entre as classes de rendimentos da população brasileira e dos estudantes das UFs a partir da renda de cinco salários-mínimos, o que implica na necessidade da continuidade da Lei de Cotas e com parâmetros inclusivos ainda mais eficientes.

Pode-se considerar que a reformulação da Lei de Cotas realizada em 2023, a Lei N° 14.723 de 13/11/2023 já efetivou mais um passo nesse caminho ao estabelecer que "no preenchimento das vagas de que trata o caput deste artigo, 50% deverão ser reservadas aos estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a um salário mínimo per capita". E que "no preenchimento das vagas de que trata o caput deste artigo, 50% deverão ser reservadas aos estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a um salário mínimo per capita."

Houve, portanto, uma redução de salário mínimo e meio para 1 salário mínimo na renda das famílias, o que permitirá a entrada de pessoas oriundas de famílias de renda ainda mais baixa que na versão anterior da Lei de Cotas. Próximas pesquisas a serem realizadas pela ANDIFES permitirão acompanhar a evolução do perfil socioeconômico dos estudantes sob essas novas condições, e compará-los com o perfil da população brasileira.

É preciso lembrar, também, que a educação superior brasileira já é uma das mais privatizadas do mundo, 78,0% das matrículas estão nesse setor, segundo o Censo da Educação Superior de 2022. A introdução de mensalidades nas instituições públicas é uma ação que pode ser associada à privatização, o que inviabilizaria ainda mais a presença das pessoas oriundas de famílias com renda mais baixa realizando educação superior.

Registra-se, ainda, que devido à enorme desigualdade brasileira e o perfil das famílias dos estudantes, como visto anteriormente, teríamos um valor equivalente a apenas 5,5% dos recursos totais das UFs, se considerarmos que o valor total dessas instituições, se considerarmos que o valor anual a ser cobrado de cada estudante seria equivalente a R$ 3.332,00 com renda por pessoa da família a partir de 2 salários-mínimos, o que equivaleria a 10% da renda per capita da população brasileira.

A manutenção desse mito, se considerarmos os argumentos apresentados anteriormente, pode ser considerada uma abominação pelo fato de ele estar suportado na grande desigualdade existente na sociedade brasileira. Além de contrariar a Constituição Federal de 1988, que no seu artigo 206 registra e garante um de seus mais importantes direitos relativos à educação: "gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais".

The Conversation
The Conversation
Foto: The Conversation

Nelson Cardoso Amaral não presta consultoria, trabalha, possui ações ou recebe financiamento de qualquer empresa ou organização que poderia se beneficiar com a publicação deste artigo e não revelou nenhum vínculo relevante além de seu cargo acadêmico.

The Conversation Este artigo foi publicado no The Conversation Brasil e reproduzido aqui sob a licença Creative Commons
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