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Juristas divergem sobre tese de Moraes para 'flagrante'

Deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) foi preso na noite desta terça por ordem do ministro Alexandre de Moraes

17 fev 2021 - 11h51
(atualizado às 12h09)
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A prisão em flagrante do deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) na noite desta terça-feira, 16, por propagação de ideias contrárias à ordem constitucional, discurso de ódio contra ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e apologia ao Ato Institucional 5 (AI-5), o mais violento da ditadura militar no Brasil, não é medida que encontra consenso entre juristas e advogados criminalistas ouvidos pelo Estadão nesta quarta, 17. A tese da "infração permanente", usada pelo ministro Alexandre de Moraes para derminar a prisão imediata, é considerada ilegal, correta e até mesmo necessária no meio jurídico.

Ministro Alexandre de Moraes no Supremo Tribunal Federal
22/06/2017 REUTERS/Ueslei Marcelino
Ministro Alexandre de Moraes no Supremo Tribunal Federal 22/06/2017 REUTERS/Ueslei Marcelino
Foto: Reuters

Silveira publicou um vídeo nas redes atacando os ministros do Supremo. A gravação foi divulgada após o ministro Edson Fachin classificar como 'intolerável e inaceitável' qualquer forma de pressão sobre o Poder Judiciário - manifestação que se deu em função de um tuíte do ex-comandante do Exército, o general Eduardo Villas Bôas. Postado em2018, o tuíte foi interpretado como pressão para que o Supremo não favorecesse o ex-presidente Lula eseu conteúdoteria sido planejado com o Alto Comando das Forças Armadas.

No vídeo, o deputado afirma que os 11 ministros do Supremo "não servem pra porra nenhuma pra esse País, não têm caráter, nem escrúpulo nem moral e deveriam ser destituídos para a nomeação de 11 novos ministros". Silveira afirma na gravação que já imaginou o ministro Fachin "levando uma surra", assim como todos os integrantes da Corte. Ele ainda menciona o AI-5, o Ato Institucional mais duro instituído pela repressão militar nos anos de chumbo, em 13 de dezembro de 1968, ao revogar direitos fundamentais e delegar ao presidente da República o direito de cassar mandatos de parlamentares, intervir nos municípios e Estados.

"O AI-5, que é o mais duro de todos como vocês insistem em dizer, aquele que cassou três ministros da Suprema Corte, você lembra? Cassou senadores, deputados federais, estaduais… foi uma depuração. com um recadinho muito claro: se fizer besteirinha, a gente volta", afirmou Silveira.

Depois de tomar ciência do fato, Moraes determinou, em decisão liminar, a ordem de prisão do parlamentar. Em uma decisão de oito páginas, o ministro destacou que "a Constituição Federal não permite a propagação de ideias contrárias à ordem constitucional e ao Estado Democrático". Afirmou ser "imprescindível" a adoção de "medidas enérgicas para impedir a perpetuação da atuação criminosa de parlamentar e considerou flagrante delito aquele que está cometendo a ação penal, ou ainda acabou de cometê-la.

"Na presente hipótese, verifica-se que o parlamentar Daniel Silveira, ao postar e permitir a divulgação do referido vídeo, que repiso, permanece disponível nas redes sociais, encontra-se em infração permanente e consequentemente em flagrante delito, o que permite a consumação de sua prisão em flagrante".

Sobre esse ponto da decisão, os especialistas divergem. Veja como cada um se posiciona:

Lenio Streck, jusrista e professor constitucionalista

Mais uma vez, o STF está sob Contempt of Court (ataque-desprezo à Corte). O deputado já estava sendo investigado no inquérito das fake news. Cometeu crime; e estava cometendo crime - por isso, a prisão em flagrante (precedente é o caso do senador Delcidio do Amaral). O STF usou a Lei de Segurança Nacional que, segundo a própria Corte, continua em vigor. À primeira vista, a decisão (pela prisão em flagrante) parece correta porque o conceito de flagrância deve ser entendido hoje de acordo com esse modo instantâneo de comunicação.

Mas, é preciso dizer ainda que, além de criminosa, a fala do deputado deve ser enquadrada como quebra de decoro parlamentar. Independentemente de a Câmara manter ou não a prisão, parece claro que o Brasil, como democracia, deve dizer de seus limites: pode um deputado, em nome da imunidade, cometer crime contra a própria democracia? Imunidade significa impunidade? A imunidade de um parlamentar é absoluta? Pode alguém, em nome da liberdade, pregar o fim da liberdade? A democracia tem um lema: é proibido usá-la para buscar o seu término. Essas são as perguntas que teremos de responder.

Pedro Serrano, professor de direito constitucional e de teoria do direito na Faculdade de Direito da PUC-SP

Não considero constitucional a fundamentação da ordem de prisão em flagrante. Trata-se de uma interpretação excessivamente extensiva do que se considera estado de flagrante. O ministro considerou como flagrante uma ideia de um flagrante contínuo e isso acho muito perigoso porque hoje se aplica esse conceito a uma crítica legítima, mas amanhã essa mesma fundamentação pode ser utilizada a críticas legítimas. Veja, temos hoje quatro jornalistas sendo investigados pela Lei de Segurança Nacional por terem criticado o presidente Jair Bolsonaro.

Se a tese do flagrante tivesse considerado o prazo da publicação do vídeo e sua posterior ordem de prisão talvez estivesse mais fundamentada porque estaria dentro das 72 horas previstas. Não vejo sentido falar do crime permanente por meio de um vídeo. Se for assim, uma pessoa pode ser presa daqui a um ano por um vídeo postado hoje. O caso do senador Delcídio do Amaral abriu esse predecente. Essa é a unica observação que eu faço. Do ponto de vista do conteúdo, o deputado cometeu crime.

Há muitas críticas ainda sobre a vigência da Lei de Segurança Nacional. Essa utilização da lei é muito ruim para o País. Essa lei é uma excrescência da ditadura militar, que traz tipos penais muito abertos. Com ela, você pode tanto punir aquele que atenta mesmo contra a democracia como aquele que, de uma forma lícita, faz uma crítica contra os Poderes. Agora, levando-se em conta que essa lei está em vigência, o deputado cometeu sim crime. Ele faz claramente uma ameaça aos ministros com uso de violência. E há crimes contra a honra, ameaça.

Daniella Meggiolaro, vice-presidente do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa) e presidente da Comissão de Direito Penal da OAB/SP

A fala do deputado é assustadora e preocupante, já que ela é absolutamente atentatória a todos os nossos pilares democráticos. O vídeo mostra um parlamentar insuflando a população contra a maior Corte brasileira, além de ameaçar, difamar e caluniar os ministros que compõem essa Corte. Uma pessoa qualquer fazer isso já seria algo bem grave, um deputado divulgar esse tipo de discurso é bem perigoso. O que ele fez ultrapassa, na minha opinião, todas as barreiras da liberdade de expressão.

O parlemantar comete uma série de crimes e, no atual contexto de ineficiência de parte da Câmara dos Deputados e da Procuradoria-Geral da República de prevenir e conter ataques contra à democracia, essa interpretação do ministro Alexandre de Moraes me parede possível sim. Temos uma Câmara que não só não afastou a deputada Flor de Liz (que admitiu saber de um plano para matar seu marido, assassinado em 2019) como a promoveu à secretária da mulher em um procurador-geral comprometido com o presidente que o nomeou.

Floriano de Azevedo Marques, professor e diretor da Faculdade de Direito da USP

A decisão é inegavelmente desafiadora mas me pareceu correta e proporcional aos fatos. A liberdade de expressão não é passe livre para a prática de crimes. A imunidade parlamentar não autoriza delinquir. O flagrante estava caracterizado. Cabe ao Congresso autorizar a prisão. E ao Plenário do STF ratificar ou não a decisão. Tudo como manda a Constituição.

Vera Chemin, advogada constitucionalista

A prisão em flagrante se justifica pelo conhecimento imediato e concomitante das graves condutas do parlamentar, o que motivou a ordem judicial decorrente. Além disso, a liminar que determinou a expedição do mandado de prisão em flagrante deu-se, conforme já comentado, no âmbito de um processo já existente no STF contra o parlamentar (das fake news), sem mencionar um segundo processo em face de atos antidemocráticos, no que se depreende que o parlamentar pratica de modo permanente aquelas condutas.

Independentemente do contexto jurídico em que se deu o mandado de prisão, os atos do parlamentar merecem extrema cautela das instituições competentes, uma vez que se trata da preservação do Estado Democrático de Direito que não pode ser fragilizado por quaisquer tentativas ideológicas que venham a afrontar as suas instituições. Finalmente, a Constituição Federal de 1988 prevê a prisão em flagrante por crime inafiançável de um parlamentar.

No presente caso, a ameaça à segurança nacional e às instituições dos Poderes Públicos têm forte potencial para ser enquadrada naquela modalidade de crime. Por vivermos justamente em um Estado Democrático de Direito, há que se submeter a ordem de prisão ao Poder Legislativo, para que ratifique ou não aquela decisão judicial por meio de maioria simples, por se tratar de um parlamentar que goza de imunidade material.

Augusto Botelho, advogado criminalista, é cofundador do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa) e conselheiro da Human Rights Watch

A conduta do deputado Daniel Silveira é criminosa e gravíssima. Ele deve ser investigado, processado e, eventualmente, condenado. Mas a sua prisão em flagrante é ilegal. É uma questão técnica. Sem diminuir a conduta do parlamentar, este não é um caso de flagrante. Não existe essa condição prevista em lei. Para que um flagrante seja determinado é preciso que o criminoso em questão esteja cometendo o crime ou esteja sendo perseguido por ele de forma contínua. A construção feita pelo ministro Alexandre de Moraes foge dessas possibilidades. Ele tenta incluir a conduta do deputado como a de um crime permanente, como no caso de um sequestro, por exemplo. Discordo.

Conrado Gontijo, doutor em direito penal pela USP

O vídeo do deputado Daniel Silveira gera verdadeira perplexidade. Ele faz acusações gravíssimas e totalmente despropositadas, em face do Supremo Tribunal Federal e de seus ministros. Trata-se de conduta inaceitável e incompatível com os princípios do Estado de Direito, que certamente não está albergada pela imunidade parlamentar.

Apesar disso, discordo da posição do ministro Alexandre de Moraes sobre o reconhecimento do flagrante, sob a justificativa de que o vídeo continuaria no ar. Tecnicamente, em minha visão, não há flagrante no caso concreto. Ocorre que parlamentares apenas podem ser presos em flagrante. É vedado, durante o exercício do mandato, que deputados e senadores sofram outros tipos de prisão (a prisão preventiva, por exemplo, que parece ser mais compatível com as justificativas contidas na decisão do Ministro Alexandre).

Agora, caberá à Câmara decidir se mantém ou não o deputado preso. De qualquer maneira, a hipótese é gravíssima: ataques inaceitáveis ao Supremo, que, em minha opinião, reagiu por meio da imposição de uma prisão de legalidade questionável.

Pedro Lucena. doutor em Direito Administrativo (PUC-SP)

A situação vivenciada é uma oportunidade para as instituições discutirem os limites de suas competências, o que envolve diálogo sério, de ordem pública, sobre temas como liberdade de expressão e, principalmente, imunidade parlamentar. Não à toa, a própria Constituição Federal, quando possibilita a prisão de parlamentares (artigo 53 e parágrafos), pressupõe atuação conjunta do Judiciário e do Legislativo, ou seja, interlocução entre Poderes.

Quanto ao caso específico do deputado Daniel Silveira, em sendo entendido como crime o ato praticado, a circunstância de o vídeo estar disponível na rede mundial de computadores, por si só, não demonstra flagrante delito, pois, em nossa opinião, o parlamentar não tinha acabado de cometer, não estava comentando e não estava sendo perseguido em razão da conduta, requisitos impostos pelo artigo 302 do Código de Processo Penal.

Ressalto que, no ano de 2011, na Câmara dos Deputados, houve a propositura do projeto de lei PL 1852/11, cuja intenção era atribuir flagrante delito para o autor que tivesse sido filmado ou fotografado ao cometer o crime. O projeto, contudo, foi arquivado em 2015.

Estadão
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