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Em CPI, Nise revela preocupação com mudança em bula da cloroquina: 'Exporia muito o presidente'

Médica oncologista entregou à comissão um documento comprovando que mudança foi sugerida ao presidente Jair Bolsonaro

1 jun 2021 - 20h29
(atualizado em 2/6/2021 às 15h34)
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BRASÍLIA - Em depoimento à CPI da Covid, a médica oncologista Nise Yamaguchi negou, nesta terça-feira, 1º, a intenção de mudar a bula da cloroquina para incluir o tratamento contra coronavírus entre as finalidades do medicamento. Mesmo assim, ela entregou à CPI um documento comprovando que a ideia foi sugerida ao presidente Jair Bolsonaro.

Na mensagem trocada com o médico Luciano Dias Azevedo por WhatsApp, no dia 6 de abril de 2020, Nise escreveu: "Oi, Luciano. Este decreto não pode ser feito assim, porque não é assim que regulamenta a pesquisa clínica. Tem normas próprias. Exporia muito o presidente".

A ideia sugerida por Nise previa que médico e paciente concordassem com uma "adesão ao uso experimental das medicações descritas na doença covid-19 no intuito de tratar e iniciar protocolos de pesquisas clínicas"

Embora o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta e o atual presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres, tenham narrado à CPI, recentemente, que houve tentativa de alterar a bula da cloroquina para indicar o remédio no tratamento de covid-19, Nise negou ter feito essa sugestão.

Senador pergunta a Nise diferença entre vírus e protozoário

O senador Otto Alencar (PSD-BA), que é médico, perguntou a Nize se ela sabia a diferença entre vírus e protozoário, que é o microorganismo causador da malária. A cloroquina é indicada para o tratamento de malária, artrite rematóide e lúpus.

"Protozoários são organismos celulares e vírus são organismos que têm o conteúdo de DNA ou RNA", respondeu ela. Alencar rebateu: "A senhora não é infectologista, se transformou de uma hora para outra, como muitos no Brasil se transformaram em infectologistas, e não é assim. Os protozoários são organismos mono ou unicelulares e os vírus são organismos que têm uma proteção proteica de capsídeo e internamente o ácido nucleico".

O senador voltou ao ataque. "É completamente diferente do que a senhora falou. A senhora não soube explicar o que é um vírus. Vírus não são nem considerados seres vivos. Portanto, uma medicação para protozoário nunca cabe para vírus."

Alencar também perguntou se Nise sabia qual tinha sido a primeira aparição da covid no mundo. Como ela revirava os papéis em cima da mesa para responder, o senador interrompeu: "Pode buscar nos livros que a senhora tem aí porque a senhora não sabe. Não estudou. De médicos audiovisuais este plenário está cheio".

Irritado, o senador questionou Nise sobre a qual grupo pertencia a covid-19. "Ao coronaviridae. Ele é um coronavírus", disse a médica. "A senhora não sabe nada de infectologia. Nem estudou, doutora. A senhora foi aleatória mesmo, superficial. A covid-19 é da família dos betacoronavírus", afirmou Alencar.

Diante dos senadores, Nise confirmou que esteve em uma reunião convocada pela Casa Civil, no ano passado, para tratar sobre uso de medicamentos para a covid-19. "Tinha muita gente na sala e conversamos sobre uma resolução da Anvisa que falava sobre inclusão de nova medicação terapêutica para covid e também (sobre) uma nota do Ministério da Saúde. A minuta jamais falava de bula, mas sobre a possibilidade de haver uma disponibilização de medicamentos", relatou.

Nise disse que se estava discutindo ali a "inclusão do uso do medicamento", e não de mudança de bula. "Esse papel que estava em cima da mesa só falava sobre dispensa de medicamentos. Sou especialista em regulação, isso jamais aconteceria." O presidente da CPI da Covid, Omar Aziz (PSD-AM), sugeriu uma acareação entre Nise e Barra Torres para esclarecer as diferenças entre os depoimentos.

De acordo com a médica, Bolsonaro trouxe a ela informações sobre o chamado tratamento precoce, em uma reunião que ocorreu no começo da pandemia, em abril de 2020. "Eu tive a oportunidade, no início, de receber dele a informação de que existia um tratamento que estava sendo discutido na França. Eu já tinha a informação prévia, e ele me falou nessa reunião que existia", declarou.

A médica disse que, nesse encontro com Bolsonaro, explicou que eram necessários mais dados científicos. Ela contou à CPI ter dito na reunião que iria conversar com o Conselho Federal de Medicina para validar a possibilidade de médicos prescreverem e os pacientes receberem cloroquina.

Na época, um estudo conduzido pelo médico francês Didier Raoult indicava a hidroxicloroquina no tratamento. A pesquisa foi questionada pelos pares e por entidades médicas do país por causa da metodologia usada pelo médico e pelo número reduzido de pacientes incluídos no estudo. Raoult publicou carta no site do Centro Nacional de Informações sobre Biotecnologia da França na qual admitiu que o medicamento não reduz a mortalidade.

Tratamento precoce

Nise Yamaguchi apresentou informações falsas sobre o chamado tratamento precoce contra o coronavírus. Ivermectina e azitromicina, por exemplo, são alguns dos fármacos que fazem parte da combinação de medicamentos usados para a profilaxia ou tratamento precoce da doença, mesmo sem existir comprovação científica sobre os benefícios aos pacientes.

Seguindo uma estratégia de veicular declarações antigas dos depoentes para expor à CPI, o senador Renan Calheiros (MDB-AL), relator da comissão, repetiu por três vezes uma gravação na qual a oncologista diz que "tratamento precoce salva vidas" e que, por isso, "não é preciso vacinar a população aleatoriamente porque há tratamento precoce para covid-19".

Questionada pelos senadores, Nise tergiversou, mas acabou afirmando que mantinha o que havia dito. "Eu disse que vacina não é tratamento, vacina é prevenção. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa", insistiu.

A posição da oncologista levou o presidente da CPI a pedir para que as pessoas não levassem em consideração declarações da médica, sugerindo que a vacinação total não seria necessária e urgente.

"Não escutem o que ela está dizendo. Todos os brasileiros precisam de duas vacinas. Quem está nos vendo, neste momento, não acreditem nela. Tem que vacinar. A vacina salva, tratamento precoce não salva", afirmou Omar Aziz.

A intervenção do presidente da CPI provocou bate-boca entre os senadores e fez com que alguns deles pedissem a Aziz que suspendesse o depoimento para que Nise pudesse voltar outro dia como "convocada", e não "convidada". Na condição de convocada, a médica teria de jurar dizer somente a verdade.

O senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), suplente da comissão, foi um dos que fizeram o pedido para que a médica prestasse novo depoimento, mas como convocada.

"A estratégia da Doutora Nise fica clara, tentando transformar sua fala em palestra científica. Não é. E também não estamos falando de autonomia do médico no trato com o paciente. Estamos falando sobre políticas públicas executadas sem base científica concreta. E já são 462.966 mortos", disse Vieira mais tarde, no Twitter.

Gabinete paralelo

Para Renan Calheiros, o depoimento de Nise "confirma a existência do gabinete paralelo" ao Ministério da Saúde no aconselhamento presidencial sobre covid.

"Esteve com Arthur Weintraub em reuniões na Presidência, em cerimônias e, inclusive, em evento denominado 'Médicos para a Vida', aquele que discutiu possibilidades e estratégias para se viabilizar e distribuir medicamentos para tratamento precoce. Também participou de diversas reuniões no Ministério da Saúde", escreveu o senador do MDB em suas considerações sobre as afirmações da médica.

O relator da CPI disse, ainda, que Nise fez "falsas declarações" sobre nunca ter se reunido sozinha com Bolsonaro e sobre não participar de reuniões do governo sobre vacinas.

Em nota, o grupo "Médicos pela Vida" repudiou "veementemente" a postura de senadores no depoimento prestado por Nise. "Mais uma vez, senadores totalmente despreparados e com objetivos eminentemente partidários e eleitoreiros perderam uma grande oportunidade de produzir ao Brasil e aos brasileiros perspectivas efetivas de políticas públicas para a reversão do quadro da pandemia no País", diz nota assinada por "Médicos pela Vida".

O vice-presidente da CPI, senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), perguntou à médica se ela conhecia o empresário Carlos Wizard. Ela respondeu afirmativamente e disse que Wizard tinha "interesse real" no assunto, ajudando a formar, como empreendedor social, um conselho científico voluntário. Pelas contas de Nise, esse conselho já conta, atualmente, com 10 mil médicos voluntários no País.

A médica observou que Bolsonaro e o ex-assessor especial da Presidência Arthur Weintraub receberam os especialistas desse grupo. "A gente discutiu a formação do conselho científico independente, sem ter vínculo com o Ministério da Saúde, sem vínculo oficial", declarou ela, negando que se tratasse de um "gabinete paralelo". O papel de Weintraub, irmão do então ministro da Educação, Abraham Weintraub, teria sido o de "unir dados". Na reunião citada, o tema tratado foi a importância do tratamento precoce. "Esses 10 mil médicos já existiam mobilizados no Brasil. Eles trabalham de forma totalmente voluntária", insistiu Nize.

Estadão
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