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Eleições 2018: 'Meu objetivo é sair o mais rápido possível da carreira', diz professora

Docentes relatam suas frustrações na rede pública e exibem falhas na formação; rotina desmotiva crianças

19 ago 2018 - 05h12
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São 8 horas de uma manhã fria na sala do 3.º ano de uma escola municipal na zona norte de São Paulo. As 29 crianças de 7 e 8 anos estão agrupadas em duplas para copiar um texto sobre piolhos de cobra que a professora escreve na lousa. Sentam-se juntas não para que uma colabore com a outra na tarefa necessariamente, mas porque não há livros didáticos para todas. Ouve-se um estrondo e a professora para. Paula*, sentada sozinha no canto esquerdo da sala, havia se levantado e jogado violentamente sua mochila no chão.

"Ela é autista", explica a estagiária Marta*, que cursa Pedagogia e tem a função de cuidar das crianças "laudadas" da sala. Laudadas é o termo usado na rede para as que passaram por médicos e receberam laudos indicando deficiência ou transtorno. A legislação atual exige que as escolas regulares incluam todos os alunos com necessidades educacionais especiais.

É raro encontrar sala na rede pública sem uma criança com esse perfil. Paula* joga a mochila mais cinco vezes. O barulho não é suficiente para acordar Pedro*, que dorme desde o início do turno com a cabecinha deitada na carteira.

A lousa já está tomada de texto. A professora Joana*, de 34 anos, escreve e lê em voz alta duas perguntas sobre o tema. Mas muitos ainda copiam o primeiro parágrafo. Há também crianças não alfabetizadas na sala, então a professora dá a elas uma atividade especial, um papelzinho com letras. E segue em frente. "Acelera, gente." O vento frio entra pelas janelas abertas, as cortinas de pano marrom voam insistentemente para o rosto de três meninos.

Paula* agora folheia um livro com páginas rasgadas. Ao perceber que a estagiária saiu da sala, ela tira a roupa. Em segundos, já está correndo só de calcinha cor de rosa. "A gente não tem preparo para esses casos. No começo eu ficava muito nervosa e agora até me acostumei. Mas os pais não ajudam, a mãe dela nunca veio conversar comigo", conta a professora.

É hora da atividade de matemática. Joana* distribui papéis com contas, metade, dobro, triplo. A dupla perto da janela se olha sem saber como começar. "Metade é o que mesmo?", pergunta uma das meninas. "É quando se divide o número por dois", diz a professora, voz alta e firme. Ela não consegue notar a dificuldade persistente dos que estão no fundo. Muitos são filhos de imigrantes bolivianos. Toca o sinal, recreio.

"Você aprende a dar aula entrando na sala e fazendo", diz ela. "Na faculdade não aprendemos isso. Cada uma tem sua metodologia, própria ou copiada de alguma professora que conheceu." Joana* e nenhuma outra colega entrevistada têm ideia do que diz a Base Nacional Curricular Comum (BNCC), aprovada no fim de 2017.

Enquanto as crianças correm e gritam na quadra, as professoras comem frutas na sala destinada a elas. Sabrina*, de 38 anos, reclama do "acúmulo". É como chamam a jornada dupla de trabalho. Como 40% dos professores do Brasil, ela e Joana* dão aulas em mais de uma escola, numa rotina de 11 horas de trabalho.

O almoço é uma marmita esquentada no micro-ondas e dura 20 minutos. Quase não sobra tempo para corrigir provas, preparar aulas. "Não dá para sobreviver se tiver um emprego só", diz Joana*. Juntos, seus salários somam R$ 4 mil. "A sociedade não respeita o professor. Eu queria mudar de vida, mas só sei fazer isso", lamenta Sabrina*.

No andar de cima, Mariana*, de 34 anos, tenta controlar a gritaria no 5.º ano. Poucos se esforçam para fazer uma atividade: uma menina escreve mensagem no celular, meninos andam de um lado para o outro. A professora oficial faltou - algo frequente, diz a substituta. "Nessa idade a questão social já transborda."

Acaba o turno da manhã e Joana* vai para uma escola estadual. É dia de conselho de classe, atividade bimestral em que a coordenadora orienta as professoras. "O João* é difícil, empurra, bate. O Mario* não se concentra", vai relatando Julia*, docente do 1.º ano. A coordenadora diz que vai chamar a mãe deles para conversar. Outras dez professoras esperam sua vez. Uma delas almoça na sala.

Adriana* conta que chorou durante uma semana na primeira vez que entrou numa sala de 9.º ano, com adolescentes de 14, 15 anos. "As crianças pequenas até gostam de você, te abraçam. Mas as grandes dançam funk em cima da carteira." A colega ao lado afirma que tem vergonha de dizer que é professora.

"Meu objetivo na carreira é sair o mais rápido possível da sala de aula", afirma Julia*, com pressa. "Os pais não te respeitam, se você quer conversar sobre um problema do filho, eles acham que você é o problema." Ela faz sua refeição principal às 9 horas da manhã porque, durante o almoço, vai de uma escola na zona norte para outra na zona sul. Por volta das 22 horas, quando chega em casa, prepara a aula que vai dar na manhã seguinte.

O sinal bate e não dá tempo de Joana* ser atendida no conselho de classe. Já na sala de aula, ela passa contas na lousa e chama os alunos um a um para resolver. O ruído do ônibus na rua é alto e ninguém ouve bem as dicas que a professora dá para Beatriz* conseguir resolver 125 x 2.

"Ouçam essa história como se suas vidas dependessem dela", declara a professora, mudando a matéria. A narrativa é triste, sete irmãos são transformados em corvos e nunca mais verão os pais. As crianças precisam reescrever, de memória, a parte final do texto.

Três alunos não vão para a educação física porque ainda não conseguiram terminar de escrever. "Frango é com M ou N, prô?" pergunta Flávio* à professora. "Prô" é como são chamadas as docentes em escolas públicas. "Quais são as duas letras que podemos usar o M antes?", ela devolve com outra pergunta. Flávio* não tem ideia.

Ao lado dele, José* empacou na palavra "copinho". O menino começa a chorar. "Vá lavar esse rosto", pede Joana*, com a voz cansada de fim de dia. "Eu só brincava disso quando criança, sempre quis ser professora. Cada ano fica pior, mas eu amo meu trabalho."

*OS NOMES FORAM ALTERADOS

Estadão
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