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Lincoln: debate projeta 'desconhecido' à presidência

10 jan 2013 - 14h38
(atualizado às 14h38)
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No verão de 1858, no meio-oeste dos Estados Unidos, no Estado do Illinois, travou-se um debate político que ficou famoso na história do país. Naquela ocasião, um deputado pouco conhecido, chamado Abraão Lincoln, ousara desafiar para um duelo de ideias o poderoso Senador Stephan Douglas, chefão político da região. A querela centrou-se no problema da escravidão, fazendo com que Lincoln, até então um candidato sem expressão, graças ao Grande Debate, fosse projetado como um nome nacional apto a disputar a presidência do país.

Lincoln (1809-1865) foi presidente dos Estados Unidos de 1861 a 1865
Lincoln (1809-1865) foi presidente dos Estados Unidos de 1861 a 1865
Foto: Getty Images

“(...) A opinião pública, em qualquer circunstância, sempre tem uma ideia central (...) a ideia central da nossa opinião pública do seu começo até recentemente continua sendo a da igualdade do homem”. (A.Lincoln, 1958)

Era costume de Abraão Lincoln, quando advogado pouco conhecido, entre os anos de 1830-40, fazer duas vezes ao ano um circuito, uma viagem de dois meses ou mais, para atender à clientela da sua banca. Enquanto isso, o escritório de Springfield, no Estado de Illinois, ficava aos cuidados do seu sócio e depois biógrafo William Horndon. Certa vez, ao navegar num barco a vapor pelo Rio Ohio, de Lawrence em direção a Saint Louis, no Missouri, ficou chocado com uma cena que testemunhou.

Num dos portos do rio, um capataz subira a bordo com dez ou mais escravos presos uns aos outros com ferros. Nunca mais, confessou ele em carta, datada de 24 de agosto de 1855, ao seu amigo Joshua Speed (dono do armazém em New Salem, onde ele trabalhara quando jovem), aquela cena deixou de atormentá-lo. A indignação de que foi tomado com a visão daqueles pobres negros acorrentados mudou-lhe a vida. Amaldiçoou-se por não ter dito nada, por ter mordido os lábios e ficado quieto frente àquela infâmia a que outros seres humanos eram submetidos. 

Horndon conta que o futuro presidente e mártir da república já tinha o gosto pelo debate desde os seus tempos de balconista. Leitor obsessivo da crônica política, saboreando os ensaios de Emerson e da biografia de Washington, ele trazia a política no sangue. Nada, porém, o impedia de, em pleno desenrolar de um argumento, parar tudo para contar uma boa piada caipira que ele se lembrara no momento. Os condados todos naquela época estavam agitados pela polêmica abolicionista. Illinois, o estado dele, não admitia a escravidão nas suas terras.

A nova lei do Kansas-Nebraska

Todavia, os territórios mais para o Oeste, os do Kansas-Nebraska, achavam-se em pé de guerra, divididos pela questão servil. Mesmo havendo um acordo entre nortistas e sulistas - o Compromisso do Missouri de 1820 -, de que os territórios a serem ocupados no futuro estariam livres do trabalho escravo, um senador do Illinois, Stephan Douglas, pessoalmente interessado na colonização deles, fizera aprovar uma nova lei.

Pelo Kansas-Nebraska Act, aceito pelo Senado em 1854, entregava-se às populações locais, a serem assentadas, a possibilidade de elas votarem a favor ou contra a existência da escravidão nas novas terras abertas. Não demorou a que imigrantes sulistas e nortistas confluíssem para lá, para o Kansas, para fazer valer a sua causa;  os primeiros a favor da escravidão, os segundos contra (o que provocou uma guerra civil entre eles, antecipando assim a Guerra de Secessão de 1861-65).

Para inflar ainda mais as paixões, a Suprema Corte havia rejeitado, em 1857, a demanda de um ex-escravo chamado Dred Scott, que se refugiara nos estados do norte, de ser considerado definitivamente como homem livre e cidadão americano. Escravo uma vez, escravo sempre, estatuto do qual o cativo somente se libertava se conseguisse obter a manumissão do seu senhor.

Lincoln, várias vezes eleito deputado estadual e uma vez federal, considerou o projeto de Douglas um despropósito.  Fundador do Partido Republicano local, decidiu desafiar o todo-poderoso senador do Partido Democrata (em busca da renovação do mandato) para uma série de debates. 

O Grande Debate: a Casa Dividida

Acertaram os dois marcar sete encontros públicos em sete cidades diferentes do Estado (Ottawa, Freeport, Jonesboro, Charleston, Galesburg, Quincy e Alton), a realizarem-se entre os dias 21 de agosto a 15 de outubro de 1858. Era de se ver cada um deles chegando aos lugarejos. O juiz Douglas tinha à disposição um trem especial, cortesia da Illinois Central. Lincoln, por seu lado, um pobretão, vinha num vagão comum ou mesmo conduzindo uma charrete.

O seu adversário era um tipo taurino, baixo e atarracado.  Lincoln era de dar dó: um varapau altíssimo e feíssimo, com uma imensa cartola na cabeça, vestindo sempre paletós bem mais curtos do que seus braços e calças curtas que deixavam expostas as suas enormes botinas.  O “pequeno gigante”, como apelidaram o senador, e o grandalhão, lado a lado num estrado de madeira, acompanhados pelas autoridades locais, ao som de uma bandinha que tocava “Oh! Susana”, quase faziam um número circense. Todavia, juntavam multidões. Certa vez, 15 mil foram vê-los em Freeport.

Lincoln foi claro: os Estados Unidos eram uma casa dividida (House Divided). Era impossível continuar assim: metade livre, metade escravo. Rejeitou o argumento de Douglas de que a escravidão era um problema dos estados do Sul e que cabia aos habitantes dos novos estados a serem integrados na União decidirem “democraticamente” se desejam ou não a sua implantação. Não. A liberdade ou não dos indivíduos não podia ser decidida pelo sufrágio.  Era um problema universal. A escravidão era uma vergonha para a humanidade, sendo que sua existência feria a essência da Declaração de Independência, de 1776, que assegurara que “todos os homens nascem iguais”. 

Enfatizou Lincoln que a “peculiar instituição” como os escravistas gostavam de chamar a instituição cativa, era algo temporário, aceito apenas em circunstâncias históricas muito especiais, visto que a essência verdadeira e autêntica da opinião pública americana era favorável à igualdade de todos.

Não ficava bem continuar afirmando, por exemplo, que todos eram iguais “menos os negros, os estrangeiros e os católicos”. Tratava-se de uma hipocrisia (Lincoln chegou a escrever a um amigo que, por vezes, dava-lhe vontade de mudar-se para a Rússia, porque lá o despotismo era puro, e não procurava se disfarçar com retórica igualitária como era costume entre seus conterrâneos).  A consequência futura daquela situação, até ali indefinida, era de que ou os Estados Unidos se tornariam um país inteiramente escravo ou inteiramente livre. Aquela situação não podia persistir para sempre.

Ainda assim, mesmo tendo Lincoln e seus argumentos, enorme acolhida junto às populações, Douglas ganhou um novo mandato senatorial (*). Lincoln, liderando o partido abolicionista, dois anos depois desta série de debates extraordinários, em 6 de novembro de 1860, elegeu-se presidente dos Estados Unidos com 39% dos votos populares e 60% do colégio eleitoral. Sua vitória, todavia, foi entendida pelos estados escravocratas do Sul como uma declaração de guerra. E logo ela teve começo.

(*) Naqueles tempos os senadores americanos eram escolhidos pelas legislaturas estaduais, não pelo voto direto dos cidadãos, o que somente imperou a partir de 1911. O debate serviu para pressionar os deputados estaduais a favor de um ou de outro postulante à cadeira senatorial.

Fonte: Voltaire Schilling
Fonte: Especial para Terra
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