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Davos: a montanha mágica

Davos, um lugarejo de luxo nos Alpes suíços, que reúne personalidades, políticos e homens de letras todos os anos no final de janeiro

24 jan 2018 - 19h47
(atualizado às 19h49)
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Desde 1969 reúnem-se em Davos, um lugarejo de luxo dos Alpes suíços, nos finais de janeiro de cada ano, personalidades, estadistas, políticos, pensadores e homens de letras do mundo inteiro, convidados para livremente exporem suas ideias ali. Seguramente a inspiração de tais encontros realizarem-se ali foi motivada pela tentativa de reproduzir o rico debate de idéias que permeou o livro de Thomas Mann, intitulado a Montanha Mágica, publicado em 1924, e que se passa inteiramente nos altos daqueles nevados.

Davos, a montanha mágica
Davos, a montanha mágica
Foto: iStock

“Este mundo novo, social, este mundo unificado da organização e planificação, no qual a humanidade se sentirá liberada de todos os sofrimentos desumanos e desnecessários que ofendem a razão mesma, este mundo virá....Virá porque uma ordem externa e racional...terminará por ser criada (...) com o fim de que o autenticamente espiritual possa viver de novo e possa fazê-lo de boa consciência.”

Thomas Mann – “Goethe, representante da época burguesa”

A filosofia de Heidegger

Martin Heidegger, a maior revelação da  filosofia alemã,   era um homem comum. Parecia, agia e vestia-se como um qualquer. Gostava de fazer suas sensacionais  conferências em trajes de suábio, típicos da sua terra natal. Por vezes,  até  com o seu abrigo de caminhar e  esquiar. Era intencional. O pensamento dele desprendera-se dos macro-sistemas de Kant ou de Hegel, ligando-se às questões da existência, as coisas mais próximas que incomodam e afligem os homens: a angustia, o medo,  a morte, o ser e o ser-aqui ( Dasein). De certo modo, ainda que envolvida numa linguagem cabalística, carregada de expressões obscuras que nem seus discípulos mais próximos entendiam bem,  a  filosofia de Heidegger era a expressão da Völkishphilosophie,  a filosofia populista,  uma inteligentíssima leitura  do cotidiano construída ao redor do comezinho e centrada no eu. Um pensamento  que teve a audácia de se erguer na Alemanha dos anos vinte, na esteira da derrota na Guerra de 1914-18, em desafio aos grandes monólitos da metafísica, abalados, e um tanto desacreditados,  erguidos no passado do Ocidente.

Heidegger e Cassirer

O primeiro embate público  entre  o existencialismo e a metafísica, ainda que educado como um encontro de cavalheiros, deu-se em 1929, no seminário filosófico de Davos, na Suíça, em meio a uma paisagem montanhosa de tirar o fôlego. De um lado, frente a um público eletrizado como se fosse assistir a uma partida final de um campeonato,  apresentou-se Heidegger, então com 40 anos, a mais brilhante cabeça da Alemanha daquela época, um ex-católico,  um rude e tosco camponês de cabelos pretos que bramia o cajado contra o estabelecido, exigindo trazer o pensamento para o chão.

Do outro, na mesma mesa,  estava Ernst Cassirer, com 55 anos,  um filósofo neokantiano, descendente do patriciado judaico-alemão, um homem refinado e culto, aureolado com  uma cabeleira branca,  que ali estava para defender o patrimônio racionalista germânico do ataque que lhe movia a gente da Floresta Negra, propondo exatamente “extirpar a angustia daquilo que é  terreno”.

O místico e o cartesiano

Enquanto Heidegger, emigrado da teologia e da formação católica, fascinado pela “realidade da irrealidade”,  despendeu demorados estudos sobre um pensador escolástico como Duns Scotus, um critico da razão morto em 1308,  sendo também um devoto do monge alemão chamado Abraham a Sancta Clara, tendo pois suas origens intelectuais profundamente enraizadas no mundo místico,  Cassirer, bem ao contrário dele,  defendera sua tese em 1899 sobre Descartes, o fundador do racionalismo moderno ( Descartes, kritik der mathematischen und naturwissenschaftlichen  Ernenntnis),  inclinado-se desde então para as formas simbólicas, racionais,  que o compõe. O sucesso intelectual de ambos dera-se quase ao mesmo tempo: enquanto Heidegger publicou o seu famoso Zein und Zeit ( O Ser e O tempo) em 1927, Cassirer concluiu a Philosophie der symboliches Formen ( A filosofia das formas simbólicas) em 1929.

Poucos mortais entenderam o vocabulário em  que os dois divergiram, inclusive o próprio moderador, que, numa das pausas,  um tanto tonto, afirmou que os “ambos os senhores falam num idioma muito distinto”. Mas , no final, para a maioria pareceu  que era Heidegger quem representava os novos tempos. O racionalismo humanista recuara frente a ofensiva daquela filosofia de uma religião  “sem fé e sem Deus” de Heidegger.

Um reitor o outro exilado

Nem bem se passaram três anos  após o sensacional torneio intelectual de Davos , com a ascensão de Hitler ao poder na Alemanha em 1933, Cassirer embarcava para um longo exílio, falecendo em Yale, nos Estados Unidos, em 1945,  enquanto Heidegger, aderindo aos nazistas, assumia a reitoria da Universidade de Freiburg, de onde tentou alçar-se a ser o führer da filosofia alemã. O debate entre Heidegger e Cassirer, de certo modo,  retomou e ao mesmo tempo deu seguimento a desavença entre Settembrini e Naphta, dois dos personagens mais importantes do romance de Thomas Mann,  “A montanha mágica” ( Zauberberg), publicado uns poucos anos antes, em 1924. Obra aliás que o levou a receber ao Prêmio Nobel de Literatura exatamente naquele mesmo ano de 1929, quando se deu o debate em Davos.

Humanismo e Contra-reforma

Nele,  o italiano Settembrini apresentou-se perante Hans Castrop, o personagem central (um jovem vindo de Hamburgo atacado pela tuberculose que estava a tratar-se num sanatório em Davos), como um humanista, portador das melhores tradições do Iluminismo e do livre-pensar, enquanto que o seu rival  Naphta,  um ex-jesuíta sombrio, dogmático, era a encarnação viva da Contra-Reforma, do anti-cientificismo e da censura.

Nos sete anos que o jovem Castrop passou (  entre 1907-1914)  no Sanatório Internacional de Berghof de Davos  ele, em suas caminhadas pelas paragens alpinas que cercam o lugarejo suíço, aspirando-lhe o ar de champanhe,  foi assediado pela oratória lógica,  sedutora  e veemente,  ainda que intercalada pelas insuficiências pulmonares   dos dois contendores, de Settembrini e Naphta. Naquela montanha mágica pareciam voar e sussurrar, como se fossem fantasmas de épocas diversas, os espíritos cultos de tempos remotos cujos ecos se misturavam com os do aqui e agora.

O duelo

A razão e o mistério, a esperança e o ceticismo, o liberalismo e o autoritarismo, a liberdade e a prostração, junto com uma infinidade de outros temas, duelaram afim de seduzir o jovem tísico, símbolo da burguesia européia fragilizada, na tentativa de fisgar a alma daquele pobre Fausto moderno. Hans Castrop refeito, atabalhoado com que escutou naqueles cimos olímpicos,  desceu por fim à planície para  ir meter-se na guerra de 1914,   travada em toda a Europa,  perdendo-se na  névoa e na fumaça da pólvora.

O retorno à montanha mágica

Os encontros enciclopédicos de Davos, retomados em 1969 por uma fundação, inspirados num destes momentos em que a realidade imita a ficção, procuram desde então, anualmente recriar aquele clima de confrontos e de interação de idéias  que Thomas Mann detalhou à exaustão nas 800 páginas do seu livro,  e que Heidegger e Cassirer travaram in corpore em 1929. Simbolicamente, por detrás dessas reuniões, existe a mística de que as grandes soluções  da humanidade originam-se dos altos, daqueles lugares elevadíssimos, olímpicos,  que estão mais perto dos deuses, os verdadeiros inspiradores e iluminadores dos caminhos humanos.  O que podemos esperar das incontáveis propostas de Davos é que neste século que ora adentra, serenadas as paixões ideológicas que devastaram o século XX,   não nos percamos na noite e na neblina  como parece ter sido o que aconteceu com o jovem Castrop.     

Bibliografia

Rüdiger Safranski – Heidegger, um mestre da Alemanha entre o bem e o mal (São Paulo, Geração Editorial, 2000);

Georgy Lukács – Thomas Mann (Barcelona-Mexico, Grijalbo 1969);

Georgy Lukács – El asalto a la razon (Barcelona-México, Grijalbo, 1968)

Thomas Mann – A Montanha Mágica (Lisboa, Edição “Livros do Brasil” s/data);

Thomas Mann - Ensaios (São Paulo, Perspectiva,1988);

George Steiner – Heidegger (México. F.C.E.,1986);

Ernst Cassirer – Ensaio sobre o Homem (São Paulo, Martins Fontes, 1997)

Pierre Bourdieu – A ontologia política de Martin Heidegger (Campinas-SP, Papirus, 1989);

Martin Heidegger – Ser e Tempo (Petrópolis-RJ, Vozes, 1988, 2 vols.);

Martin Heidegger – Disputacion de Davos entre Ernst Cassirer y Martin Heidegger, in Kant y el problema de la metafísica (México, F.C.E., 1996);

Wolfgan Stegmüller – A filosofia contemporânea (São Paulo, Edusp, 1977, 2 vols.);

Jürgen Habermas – O discurso filosófico da modernidade (São Paulo, Martins Fontes, 2000).

Fonte: Especial para Terra
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