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Empresas se adaptam para blindar equipes sob constante pressão

Com alta digitalização na pandemia, profissionais de tecnologia sofrem ainda mais pressão; estado de alerta bem dosado pode ajudar na produtividade, mas em excesso pode levar a burnout, diz especialista

22 nov 2020 - 05h14
(atualizado em 23/11/2020 às 09h43)
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Especial para o Estado

Um vídeo que viralizou no final de outubro mostrando o desabafo da então coordenadora de engenharia de dados do Santander fez muita gente se identificar. Direta e reta, ela relata que a vida do profissional de TI (tecnologia da informação) seria a própria definição de inferno na Terra. "Todo dia você acorda desatualizado, aí tenta fazer o seu melhor e o que acontece? Dá pau", conta. "Espero que na próxima vida eu nasça com outro talento, de pintar quadro, de vender minha arte na praia... Algo que me traga mais paz de espírito do que eu tenho hoje."

Apesar da dose de bom humor, o depoimento joga luz sobre uma questão que afeta boa parte do mercado. De acordo com uma pesquisa da Talenses de 2019, 49% dos profissionais brasileiros sofrem de ansiedade e 44% já tiveram episódios de burnout - síndrome psicológica decorrente da forte tensão emocional crônica associada ao estresse ocupacional severo.

A psicóloga Luciene Bandeira, sócia da plataforma Psicologia Viva, define ansiedade como um sentimento de apreensão que antecipa uma situação de perigo, algo desconhecido ou estranho. "A ansiedade estimula o indivíduo a entrar em ação, porém, em excesso, faz exatamente o contrário, impedindo reações", explica.

Segundo ela, se estiver sob controle, o sentimento pode ajudar na produtividade porque o estado de alerta diminui as chances de errar e potencializa a atenção. "O problema começa quando a ansiedade passa a determinar e limitar o nosso comportamento", diz. "Em excesso, interfere no sono, na concentração, na alimentação. Toda a qualidade de vida se compromete."

Mesmo que o problema seja generalizado, algumas ocupações parecem gerar ansiedade por natureza. É o caso dos cargos na área de tecnologia, que virou epicentro de demandas na pandemia.

"São pessoas que sofrem uma pressão enorme intensificada pela incerteza", afirma Ricardo Ouchana, CTO da gestora de fundos de crédito Kobold. "As pessoas geralmente olham para desenvolvimento de software como ciência exata, sendo que na verdade é um trabalho pautado em muita pesquisa e no imponderável."

Por construir a ponte entre as áreas de TI e negócios, ele explica que o grande desafio é casar os calendários e fazer com que uma entenda o tempo da outra. Para isso, Ouchana aposta em duas frentes. A primeira é blindar os desenvolvedores (os chamados devs) do restante da empresa.

"O trabalho do desenvolvedor precisa de introspecção e tempo, então nada pode entrar diretamente para eles", diz. "A comunicação deve ser filtrada e é essencial que a liderança entregue uma definição de trabalho mais elaborada e com menos lacunas."

Ele e o time também criaram o hábito de fazer uma retrospectiva cíclica que aborda tanto aspectos técnicos do trabalho quanto emocionais. "Com o tempo, você vai aprendendo a perceber onde estão seus gatilhos, o que te deixa nervoso, e consegue se controlar melhor."

Controle da carga horária

Head da Lean IT, Rodrigo Aquino conta que a pandemia trouxe duas situações distintas à rotina do time de TI. De um lado, todos passaram a trabalhar de casa, ambiente teoricamente mais tranquilo e que gera um aumento na produtividade. Do outro, isso acarretou um número maior de reuniões improdutivas e de pessoas acionando os profissionais de TI com frequência.

"O que recomendo é um processo de gestão visual, não apenas do calendário de reuniões, mas do cronograma do que cada um está fazendo." Para ele, é uma forma de diminuir o nível de ansiedade dos líderes e, consequentemente, dos profissionais de tecnologia, que não sofrem interrupções constantes.

Uma gestão eficiente da carga horária é outro fator que alivia o estresse desses colaboradores. "Trabalhamos com um sistema de squads, que é basicamente um time multidisciplinar que vai atacar uma tarefa específica", conta Bruno Rezende, CEO da desenvolvedora de plataformas de inteligência 4Intelligence. "Cada squad tem seu líder e cabe a ele garantir que ninguém dentro do time trabalhe mais horas do que deveria e que tenha o nível de tranquilidade necessário."

Outro profissional que convive tradicionalmente com a lógica da ansiedade é o administrador de carteiras. "Ele tem a responsabilidade gigante de lidar com o dinheiro dos outros", conta João Luiz Braga, que deixou a XP Asset no final do primeiro trimestre para abrir sua própria gestora - a Encore.

"É um contexto estressante porque envolve informação limitada e auxílio de ferramentas que todos têm", explica o empresário. "Tem que estar muito atento e enxergar todo o cenário, mas sempre lembrando que ele pode mudar da noite para o dia."

Braga fala que, até pouco tempo atrás, essa era uma carreira curta porque ninguém aguenta o tranco por tanto tempo. "Hoje percebo que o nível de estresse, além de exponencial, é proporcional à postura dos líderes", reflete. Na Encore, Braga tem procurado criar um ambiente em que o erro é analisado de forma aberta, sem culpabilizar o profissional. "Precisamos saber lidar com as imprevisões do mercado. Não existe verdade absoluta em nenhum cenário, não é matemático."

Outra regra básica da empresa é contratar pessoas que, além de competentes, sejam - literalmente - gente boa. "Isso minimiza o estresse porque aí um apoia o outro, tem ombro para debater, perde o medo de errar."

Inteligência emocional e autocuidado

Na linha de frente entre colaboradores e empresa, a turma de RH vive lidando com pressão de todos os lados. Neste caso, porém, o olhar para o humano vem em primeiro lugar. "A gente está num mercado de serviços profissionais de alta performance, mas o maior foco são as pessoas", afirma Beatriz Alli, diretora da área no Machado Meyer Advogados.

"Com a chegada da pandemia, em dez dias conseguimos colocar 100% da operação em home office, mas aí percebemos que as pessoas começaram a ficar ansiosas sobre o futuro, querendo entender como vai ser a volta", conta. "E a verdade é que não temos resposta, então a forma que encontramos de lidar com essa ansiedade foi transmitir tudo de forma transparente."

Além de transparência e diálogo, autocuidado é outro termo que precisa fazer parte do vocabulário. "A pandemia colocou todos em um patamar de desafios, independentemente da natureza do trabalho", acredita Vivian Navarro, gerente de RH da área de bem-estar da Basf, que lançou um programa de apoio psicológico e autocuidado baseado em quatro pilares: físico, emocional, social e desenvolvimento.

Ela conta que uma das temáticas mais presentes nas pesquisas com os colaboradores é a dificuldade de "equilibrar todos os pratinhos". "Estamos todos precisando de válvulas de escape e o bem-estar ajuda a enfrentar momentos caóticos, é uma forma de se fortalecer para lidar com as questões do mundo externo", sublinha a executiva.

De olho nos sintomas

A síndrome de burnout possui características complexas, segundo a neurocientista Thaís Gameiro, da Nêmesis. Ela aponta, no entanto, alguns sintomas comuns que podem indicar que algo está errado. Confira (e procure ajuda, caso necessário):

  • Sensação de esgotamento físico e mental
  • Perda de interesse nas atividades de trabalho
  • Sentimentos negativos associados ao ambiente de trabalho
  • Falta de motivação para ir trabalhar (associada ao absenteísmo)
  • Mais irritabilidade, depressão, ansiedade, baixa autoestima, dificuldade de concentração, pessimismo
  • Alguns sintomas também podem ser físicos, como dores de cabeça constantes, enxaqueca, fadiga, palpitação, pressão alta, tensão muscular, insônia, problemas gastrintestinais, gripes e resfriados recorrentes
Estadão
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