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Decisões do Supremo contra Executivo são atentados a independência dos Poderes

Ao impedir posse de Alexandre Ramagem e expulsão de diplomatas venezuelanos, ministros do Supremo avançam sobre decisões que são prerrogativa da Presidência

6 mai 2020 - 15h06
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É sempre perigoso, em ditaduras ou democracias, o indivíduo estar certo quando quem manda no governo está errado - é justamente neste ponto, na verdade, que tiranias e regimes democráticos ficam mais parecidos. Não faz muita diferença, na prática, ser obrigado a obedecer uma ordem ilegal dada por um ditador ou por um mandarim das instituições, que por vestir uma toga preta e ter ganhado uma nomeação para o mais alto tribunal de Justiça do País, atribui a si próprio poderes que a lei não lhe concede - e cujo julgamento não está sujeito a nenhum tipo de controle, análise ou revisão por ninguém, no céu e na terra. Isso não é Estado de Direito. É desordem com fantasia de "ordem jurídica".

Não há exemplo mais agressivo desta deformação do que algumas das últimas decisões que o STF tem tomado para proibir o Poder Executivo de fazer isso ou aquilo. A intenção, pelo que dizem os magistrados, é impedir o governo de cometer abusos no uso do poder, ou de praticar algum outro delito qualquer. No mundo das coisas reais, o que tem resultado disso são atentados contra a independência dos Poderes da República - como aconteceu com a decisão de proibir o presidente de nomear o diretor da Polícia Federal, ou o seu ministro do Exterior de expulsar diplomatas venezuelanos cuja presença no país foi considerada nociva aos interesses nacionais. Pela Constituição, cabe ao Executivo, e a ninguém mais, decidir livremente sobre uma questão e a outra. Mas dois ministros do STF, sem a concordância dos outros nove, acharam que não - e por acharem que não a sua opinião individual acabou valendo mais do que está escrito na lei.

Desta vez não são os "inimigos das instituições", como em geral se diz sobre os críticos do STF, que ficaram chocados com o surto de onipotência dos ministros. "Não consigo encontrar na Constituição nenhum dispositivo que justifique a um ministro da Suprema Corte impedir a posse de um agente do Poder Executivo, por mera acusação de um ex-participante do governo, sem que houvesse qualquer processo ou condenação", disse Ives Gandra Martins, um dos mais admirados juristas do Brasil e participante ativo dos trabalhos da Constituinte. Não dá, realmente, para acusar Ives Gandra de ser um bolsonarista raivoso que quer fechar o STF. (Em sua declaração sobre o episódio da Polícia Federal ele teve a bondade, inclusive, de chamar o ministro Alexandre de Moraes de "grande constitucionalista".)

O jurista, muito simplesmente, observa que a decisão foi ilegal. "Se a partir de agora meras suspeitas servirem, o Poder Judiciário estará revestido de um poder político que não tem, constitucionalmente", diz Gandra. Ele lembra o disparate que seria essa violação da lei: qualquer magistrado, em qualquer comarca do Brasil, poderia adotar o mesmo critério e impedir nomeações com base em denúncias que não foram examinadas "em processos com o direito inviolável à ampla defesa". Suprimir esse direito é uma agressão direta da Constituição Federal, lembra Gandra - e, nesse caso, as Forças Armadas teriam de intervir para repor "a lei e a ordem, como está determinado no artigo 142 da Lei Suprema."

Não se trata apenas de Ives Gandra. "Eu acho que o Judiciário exagerou", disse o ex-presidente Fernando Henrique, que também não pode ser dado como bolsonarista-raiz. "Foi além do que é constitucional". Dentro do próprio STF houve protestos claros e públicos. O ministro Marco Aurélio Mello enviou um ofício ao presidente do STF, Antônio Toffoli, propondo que o regimento do tribunal seja reformado para que todas as decisões envolvendo atos de outros poderes tornem-se obrigatoriamente sujeitas à votação do plenário - e não dependam mais da vontade um homem só. "Há um Supremo, e não onze", afirmou Marco Aurélio. "Alguns colegas, os que se sentem semideuses, não vão gostar. Paciência." O próprio presidente Toffoli, enfim, mostrou-se contrário ao "ativismo judicial" e a decisões que proíbem o governo de fazer isso ou aquilo porque o juiz que proibiu não concorda com elas.

O Judiciário quer conter excessos, abusos e atos ilegais do presidente da República? Tudo bem - mas está obrigado, mais do que ninguém, a agir estritamente dentro da lei para fazer isso. A justiça, sem lei, não vale nada.

Estadão
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