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Coronavírus

"Sofrimento para quem vai morrer e quem decide sobre leito"

Em entrevista ao 'Estado', Dirceu Greco, presidente da Sociedade Brasileira de Bioética e professor da Universidade Federal de Minas Gerais, também defende a fila única dos leitos de UTI públicos e privados

12 mai 2020 - 11h13
(atualizado às 11h31)
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O presidente da Sociedade Brasileira de Bioética, o médico infectologista e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Dirceu Greco, defende um pressuposto para o estabelecimento de protocolo para escolha de pacientes que terão direito às UTIs e ventiladores mecânicos, cada vez mais escassos na pandemia do novo coronavírus. Para ele, todos os leitos e vagas de CTI, inclusive privados, disponíveis no País devem ser colocados sob regulação e controle do Sistema Único de Saude, porque há vagas em hospitais particulares. E não há nenhuma novidade aí: já é assim no sistema de transplantes em vigor no Brasil.

"Os leitos CTI públicos no País são 1,4 para cada 10 mil habitantes. Na rede privada, o último dado que eu vi: 4,9 para cada 10 mil", diz ele, em entrevista ao Estado.

 Movimentação dentro da UTI do hospital Emílio Ribas, em São Paulo, nesta segunda-feira (27), durante a pandemia da COVID-19.
Movimentação dentro da UTI do hospital Emílio Ribas, em São Paulo, nesta segunda-feira (27), durante a pandemia da COVID-19.
Foto: MARCELO CHELLO/CJPRESS / Estadão Conteúdo

O pressuposto, simbolizado no lema Leitos para Todos, constará do documento que a SBB lançará nos próximos dias, com parâmetros para a seleção de pacientes que terão acesso às UTIs. O texto, que tem o objetivo de balizar escolhas que ele aponta como marcadas por "sofrimento absoluto" "para quem vai morrer" e "para quem vai tomar a decisão", está em discussão. Deverá se basear em escores internacionais de avaliação clínica, como o SOFA (Sequential Organ Failure Assessment), mas terá outras preocupações. Por exemplo, não discriminar por critérios preconceituosos quem vai - ou não - para a UTI que pode salvar vidas - cuja falta pode resultar na morte.

"É A ou B? É o mais jovem? Sabe como é que você faz? Eu estou aqui com um cara de 81 anos, presidente de banco, e com um jovem, que está preso lá em Bangu. Pois é, são aqueles dilemas que não têm uma solução única. Nessas situações, o cara no fundo lá toma decisão da cabeça dele, depois assume. Mas com um sofrimento absoluto, não só para quem vai morrer, mas para quem vai tomar a decisão", afirma.

A seguir, os principais trechos da entrevista:

O que é essencial levar em conta no debate sobre os parâmetros para destinação dos recursos escassos nos hospitais, durante a pandemia?

Tem um pressuposto. Porque estamos falando em falta de leitos, mas realmente não há falta de leitos. Falta de leitos tem no hospital público, né? Então, a discussão maior que está acontecendo, que a SBB está apoiando, é que em uma situação como esta, na gravidade em que está, a decisão imediata deveria ser colocar, sob a regulação e controle do SUS, os leitos e CTIs disponíveis no País. Muita gente fala que ia ser difícil, vi até o ministro (Nelson Teich, da Saúde), que não fala coisa com coisa direito, (dizer)... "Ah, isso é complicado." Mas ele mesmo lembrou: "É, no transplante é assim." O transplante de órgãos no Brasil é uma fila única, regulada publicamente. Pode ser até que chegue a um ponto em que não tenha em vários locais leito nenhum, né? Tem de ser imediato, né?Financiar mais o SUS e colocar sob a responsabilidade do Sistema Único de Saúde/Ministério da Saúde a regulação. Então, isso é o primeiro. Agora, supondo que lá cheguemos, e pode ser que alguns Estados... Podem acontecer situações como a que está hoje no Pará, principalmente Belém, no Amazonas, em Manaus, talvez Fortaleza e aquela região, em São Paulo está chegando a um ponto... No Rio é um desastre...

É um desastre...

Mas se você olhar, o desastre é público. É muito interessante bater nisso, né?

Quer dizer, no privado não tem desastre?

Questione. Em São Paulo, por exemplo, os hospitais maiores da rede privada estão inclusive ajudando a abrir leitos em hospitais públicos porque estão com sobra de capacidade para eles. Eu tenho um dado que é interessante e é numérico. Os leitos CTI públicos no País são 1,4 para cada 10 mil habitantes. Na rede privada, o ultimo dado que eu vi: 4,9 para cada 10 mil.

Então, tem uma sobra aí.

É, teoricamente, tem vagas locais. Estou em Belo Horizonte, tem uns hospitais daqui que têm uma rede mineira que tem vários hospitais. Eles abriram para o Estado três andares em um hospital deles em uma cidade pequena aqui, dizendo que estavam fazendo benesse. Mas a discussão não é essa, a discussão é acesso mesmo. E aí tem outra coisa interessante, que eu vou aproveitar e falar. Porque estamos falando do acesso quase terminal. Terminal não no sentido da morte não, (mas) acesso terciário. A dificuldade que o pessoal vai ter, primariamente, é que talvez nem chegue lá. Estão falando muito disso. Tem mortalidade porque não consegue atender na parte primária, o acesso secundário está prejudicado, na hora em que chega ao terciário já está muito evoluído e com chance grande de morte. Então esse é o primeiro passo, acho que é o primeiro ponto.

O senhor acha então que a primeira coisa a fazer é unificar os leitos públicos e privados.

Em um documento, até colocando triagem, como é que faz. Mas estamos, nesse documento nosso (da SBB), partindo do pressuposto de que não de pode discriminar por nada que possa agredir as pessoas. Não pode ser por idade, origem, se foi institucionalizado ou não, se é preto, branco, índio ou quilombola... Quer dizer, na verdade estamos colocando mais o negativo, né? E na hora de tomar a decisão (sobre quem vai para a UTI), tem de ter pelo menos três documentos internacionais, que são muito utilizados. Um, o acrônimo é Sofa (Sequential Organ Failure Assessment|). O outro é o Nice (National Institute for Health and Care Excellence), que é do Instituto Nacional de Saúde inglês. E tem o escore de fragilidade. Todos os três estão sendo utilizados, todos com falha, todos complicados na hora de chegar ao ponto final,na hora em que decide: Está bom, e agora, está no último leito, tem três pessoas... Não tem nenhuma solução mágica, não tem jeito de falar: Vou dar agora uma receita para isso.

Se tem três ou dois pacientes e um leito, mas eles estão muito parecidos, em condições de saúde, como fazer?

Essa pergunta não tem resposta. Não vou me furtar de responder, não tenho é resposta objetiva, o escore A ou B, é o mais jovem, o mais velho, o que tem melhor condição. Vale a pena lembrar o que aconteceu em 1954, mais ou menos, quando estabeleceram aquele "Comitê de Deus", quando não tinha máquina de hemodiálise para todo mundo nos Estados Unidos. Estabeleceram um comitê, colocando todas as normas (para escolher quem receberia o tratamento), depois descobriram que os caras estavam seguindo (o critério de) quem era a pessoa que estava melhor na sociedade, quem era mais religioso... Quer dizer, todas as vezes em que você põe uma situação dessas, você vai ter dificuldade. Mas o que eu quero dizer, e não é sendo otimista não, é que ainda tem uma janela de oportunidade que está entreaberta, que você pode impedir que isso aconteça de maneira real, a não ser que a epidemia torne-se realmente um desastre, como talvez aconteça, em um País tão complexo como este, tão mal-governado como este. Até lá, tem de pensar que é possível resolver. Mas eu não respondo à sua pergunta objetiva: é A ou B? É o mais jovem? Sabe como é que você faz? Eu estou aqui com um cara de 81 anos, presidente de banco, e com um jovem, que está preso lá em Bangu. Pois é, são aqueles dilemas que não têm uma solução única. Nessas situações, o cara no fundo lá toma decisão da cabeça dele, depois assume. Mas com um sofrimento absoluto, não só para quem vai morrer, mas para quem vai tomar a decisão. Não tem receita não. Estamos terminando esse documento. Acho que vai ser muito marcante a história de leitos para todo mundo, leitos para todos, esse é um movimento, vamos fazer o possível para mapear algumas possibilidades, até chegar a esse momento mais complexo.

Em linhas gerais, o que os senhores pensam propor para orientar os médicos?

Essas todas que já falei estão na lista. Vamos lembrar o pressuposto novamente: regular (o acesso a UTIs e respiradores) imediatamente pelo SUS. Aliviaria absolutamente, mas isso depende de vontade política. Não precisa de lei nenhuma para fazer. Está na Constituição. O segundo é que, em cada local desses, tenha uma equipe montada para triagem. Como a gente faz nos comitês de ética em pesquisa, principalmente que (o número de integrantes) seja ímpar, é mais fácil tomar decisão. Que ela diminua a pressão sobre o médico na ponta. Ele pode até participar, mas ele é parte de uma equipe. Estruturar ou organizar melhor as comissões de bioética dentro de cada hospital, que é uma norma definida há muito tempo pelo CFM. Você prepara isso para as pessoas saberem a hora em que são internadas, as famílias saber: Olha, tem as dificuldades, mas está tudo aqui disponível, nossa triagem é dessa maneira. Eles também não vão ter de fazer isso a priori, não vão saber se vai morrer, se vai para o CTI. Mas tudo isso aí vai estar no nosso documento. Ainda não decidimos, falamos sobre isso, mas talvez entre a discussão de ter uma estrutura nacional que possa organizar essas discussões. Se você olhar, e vale a pena você ver, os hospitais de São Paulo que são os maiores, somente os privados, tem pelo menos quatro documentos já prontos. E cada um pode estar fazendo diferente do outro. Evidentemente, vai ter peculiaridades. Internar-se em Nova Iguaçu é diferente de se internar no Rio de Janeiro.

Mas quem poderia fazer isso nacionalmente?

Tem duas coisas que aconteceram bem, que a gente pode lembrar. Uma é do Ministério da Saúde, que é a discussão sobre transplante. O segundo, que não é do Ministério da Saúde, mas é do Conselho Nacional de Saúde, que é um órgão importante, muito mais amplo e menos amarrado no sentido político do que o Ministério da Saúde, é o Comitê Nacional de Ética em Pesquisa. É uma comissão nacional, né? São experiências que vale a pena serem lembradas para pensar. E aí tem outra coisa importante também. Essa pandemia vai passar. Mas não vai ser a última, e não vai sair sem deixar muita sequela, inclusive na população toda que está aí sem acesso a muitas outras coisas.

Estadão
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